Houve uma época em que li compulsivamente todo e qualquer tipo de relato biográfico, como se a vida dos outros fosse capaz de justificar e explicar a minha. Foi uma época interessante em que descobri relatos sinceros de personalidades que eu já admirava ou estava prestes a receber em meu panteão. Durante quase uma década, li relatos de escritores, diretores, atores, atrizes, empresários, membros da nobreza, enfim, tornei-me um aficionado do gênero, tentando descobrir a humanidade escondida atrás da máscara. Na verdade, biografia a gente lê pra tentar ver se todo mundo tem tanto problema ou se a coisa é pessoal. Enfim, no meio de tanta história, algumas se mantiveram frescas, como as rosas colhidas naquela mesma manhã, e são elas que eu gostaria de dividir com vocês.

Truman Capote, por exemplo, tem um bonito relato sobre Marilyn Monroe em "Música para Camaleões", de 1980. O pequeno conto chama-se "Uma Criança Linda" e, nele, descobrimos uma Marilyn que perambula com Truman por Nova York, após o funeral de sua professora de teatro, Constance Collier, ambos atrás de algum champanhe. Os dois têm uma divertida conversa sobre a nobreza inglesa e Marilyn mostra-se surpresa com o fato de a rainha da Inglaterra não poder tocar em dinheiro, uma dama de companhia caminha atrás, atendendo aos desejos da majestade. Antes de fechar sua história, Capote adivinha a artista e mulher atrás da máscara e entende o que fez Arthur Miller apaixonar-se por ela. Marilyn era, segundo Capote, uma criança linda.

Mas não era só isso. Era uma mulher fascinante. Dia desses tomei conhecimento de outra história de Miss Monroe, que reafirma o relato de Capote, de certa forma. Quando saiu de Los Angeles rumo a Nova York, cansada dos papéis medíocres que lhe eram oferecidos, Marilyn mergulhou na efervescência cultural da grande maçã e acabou fã de Ella Fitzgerald, que vibrou uma corda no coração da estrela, como vibrou no de todos nós. Marilyn resolveu pedir pessoalmente a Charlie Morrison, dono do Mocambo, o maior clube noturno da costa oeste, em meados dos anos 50, que contratasse Ella, suspendendo, assim, a política segregacionista da casa. Miss Monroe, sabedora de sua imbatível popularidade, prometeu que ocuparia uma mesa de pista durante todas as apresentações e que a publicidade gerada pelo evento, por si só, justificaria a transgressão de Morrison. Ele concordou e o resto é história.

– Eu devo muito a Marilyn, Ella Fitzgerald declarou mais tarde – Depois que cantei no Mocambo, nunca mais fui obrigada a cantar só onde me deixavam. Marilyn era uma mulher surpreendente. Muito à frente de seu tempo, é claro. Mas ela nunca soube disso.

É por isso que gosto dos relatos biográficos. Eles são como a nova lâmina, que aplicada ao fundo confere profundidade ao desenho. Despeçome esperançoso de que Norma Jean, num paraíso tão mítico quanto sua existência, tenha ido procurar Charles Dickens, pois ele, como sói acontecer com homens de letras, saberia amar aquela linda criança sem pai.

Miguel Falabella é ator, diretor, dramaturgo e autor de novelas