notícia estourou como um ato de guerra contra o Brasil. No feriadode 1º de maio, sem prévio aviso diplomático e cercado por militares armados, o presidente da Bolívia, Evo Morales, invadiu o campo de produção de gás da Petrobras de San Alberto, no sul do país, e anunciou a nacionalização do setor de hidrocarburetos – gás e petróleo. Como um homem-bomba, numa só detonação ele atingiu os interesses econômicos e comerciais da maior empresa brasileira, espalhou deste lado da fronteira o temor do desabastecimento energético e colocou em xeque a diplomacia do presidente Lula. Ao anunciar o decreto, Morales usou requintes de provocação. Debaixo de um capacete de operário da Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB, a estatal boliviana de petróleo), rasgou seu populismo cocaleiro. “Acabou o saque das empresas estrangeiras”, proclamou, salvacionista, para justificar a quebra de contrato com a Petrobras e as demais companhias energéticas estrangeiras, a maioria européias, que atuam no país. Em seguida, soldados do Exército boliviano ocuparam as 53 instalações privadas de gás e petróleo no país. Pelo decreto, as companhias serão obrigadas a entregar toda a sua produção à YPFB, que assumirá a comercialização e definirá volumes de produção e preços. O faturamento será tributado em 82%, quase o dobro da taxa anterior. O Estado boliviano passa também a ter o controle acionário (51%) das principais empresas. É, nua e crua, a expropriação. Além da Petrobras, foram atingidas a Andina (Repsol-YPF), a Chaco (British Petroleum e fundos bolivianos) e a Tranredes (Shell, Prisma Energy e fundos). O decreto não tratou de indenizações às empresas.

Esperava-se do presidente Lula uma reação à altura da rajada de provocações de Morales. Para estupefação do País, no entanto, ele escolheu uma linha extremamente suave. “Não tem crise Brasil-Bolívia. Existirá o ajuste necessário de um povo sofrido e que tem o direito de reivindicar maior poder sobre a riqueza que tem”, disse Lula na quarta-feira 3. O problema é que esse “ajuste necessário” vai incluir, obrigatoriamente, um aumento no preço do gás que a Bolívia vende ao Brasil. O mesmo gás que responde por 70% do abastecimento industrial de São Paulo e 50% do total consumido no País, incluidos aí o conteúdo dos botijões das cozinhas brasileiras e das grandes tubulações industriais. Com receio de que, em meio à fúria populista, o governo do país vizinho interrompa o fornecimento de gás ao Brasil, um atônito Silas Rondeau, ministro das Minas e Energia, telefonou logo após a eclosão da crise ao ministro dos Hidrocarburetos da Bolívia, Andrés Soliz Rada. Apelidado de “Bocão”, ele disse que não. O risco, porém, é real. Caso a Bolívia exagere no pedido de aumento de preços e, nessa medida, as negociações com a Petrobras sejam dificultadas, quem garante que as torneiras nos campos de produção ocupados pelos militares continuarão abertas? Morales? Bocão? “Não há nenhuma possibilidade de apagão de gás neste país. É pura especulação irresponsável dos que falam disso”, reage o presidente da Petrobras, Sérgio Gabrielli.

O mercado nacional já precifica o aumento do gás boliviano em cerca de 15%, saindo dos atuais US$ 3,15 para US$ 5 por mil BTUs (Unidade Térmica Britânica). As negociações começam nesta semana. “Não podemos admitir prejuízos à nossa produção”, reagiu o presidente da Fiesp, Paulo Skaf. O governo tem o seu próprio plano para não repassar o aumento – e ele guarda enormes semelhanças com o que se viu, no passado recente, durante o Plano Cruzado. Ali, em 1986, um congelamento de preços foi sustentado artificialmente por quase seis meses, terminando com uma chuva de aumentos logo depois das eleições para governador, em novembro. Agora, com as eleições presidenciais marcadas para outubro, a idéia já pronta nos bastidores oficiais é calibrar na dose do imposto para não repassar o reajuste ao consumidor. Esse tipo de política, é claro, não se sustenta a longo prazo. Serve, no entanto, à perfeição para um governo que busca a reeleição. A retenção artificial do novo preço preserva de um gasto extra os consumidores mais pobres, para os quais o preço do botijão de gás é um dos itens essenciais mais pesados do orçamento doméstico. Exatamente a base de votos que está dando a liderança nas pesquisas a Lula.

Para entender o tamanho do imbróglio, Lula convocou uma reunião no Palácio do Planalto na manhã de terça-feira 2. Só conseguiu iniciá-la às 11h30, quando o presidente da Petrobras chegou a Brasília. Estavam presente sete ministros, mais o assessor internacional Marco Aurélio Garcia. “O presidente estava muito sentido”, relata o ministro da Defesa Waldir Pires. “Ele estava é furioso”, revela outro ministro. Chegou a soltar muitos palavrões. Foi para acalmar os ânimos que Rondeau telefonou para o boliviano Bocão. O conselheiro Garcia, no melhor estilo de um advogado paceño – como são chamadas as pessoas nascidas em La Paz –, argumentou em defesa do direito da Bolívia de nacionalizar suas lavras. “Nós já fizemos isso com a Petrobras há 50 anos, na campanha do Petróleo é Nosso”, lembrou. O embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, secretário-geral do Itamaraty, reforçou. “Eles têm direito à soberania. O essencial para nós é garantir o abastecimento de gás.” Lula, neste ponto, aderiu à tese de responder com flores às pedradas vindas da fronteira. Guido Mantega, da Fazenda, concluiu: “Os bolivianos não são suicidas. Se eles não venderem gás para nós, vão vender para quem?”

Na quinta-feira 4, Lula foi ao encontro de Morales numa reunião marcada às pressas em Puerto Iguazú, na tríplice fronteira do Brasil com a Argentina e o Paraguai. “Discutiremos nossas pendências com a Bolívia da maneira mais democrática possível”, disse o presidente, reafirmando seu tom para lá de moderado. Se quisesse, ele teria todos os motivos para externar indignação. Antes mesmo da expropriação das instalações da Petrobras na Bolívia, o governo Morales já havia pressionado o empresário brasileiro Eike Baptista a fechar as portas da siderúrgica EBX, instalada em Puerto Quijarro, perdendo investimentos de US$ 60 milhões. “Pensei que sairia de lá preso”, contou Eike sobre uma de suas reniões com os ministros bolivianos. Lula também perdeu uma chance – talvez a melhor dos últimos anos – de ser mais enfático contra seus colegas presidentes sul-americanos. Diante de Lula, eles sorriem, mas pelas costas têm, seguidamente, apunhalado os interesses do Brasil. É assim, por exemplo, com Nestor Kirchner, da Argentina. Presente à reunião de Puerto Iguazú no papel de vítima, em razão da expropriação da hispano-argentina Repsol-YPF, Kirchner comanda uma política de boicote ao consumo de produtos brasileiros, dos eletrodomésticos aos sapatos. Também é assim com o companheirão Hugo Chávez, presidente da Venezuela. Mas foi o companheirão Chávez quem articulou, ao lado do ditador cubano Fidel Castro, a nacionalização dos hidrocarburetos bolivianos. A operação da nacionalização do gás e do petróleo foi consolidada no dia 20 de abril, em Assunção, no Paraguai. Organizador de uma delirante Alternativa Bolivariana das Américas (Alba), Chávez levou à tiracolo o chanceler cubano, Felipe Pérez Roque. Numa conversa privada, ambos venderam a Morales o apoio para emplacar a nacionalização. Ali, Chávez convenceu o boliviano a criar o decreto presidencial. Os dois revisaram o texto uma semana depois. Dessa feita, em Havana, sob a proteção do camarada Fidel. Para dar ainda mais segurança a Morales, Chávez ofereceu-lhe apoio técnico e créditos superiores a US$ 100 milhões para manter em operação as refinarias que seriam expropriadas. Feito o trato, o presidente venezuelano partiu para consumar a traição a Lula. Seguiu de Havana para Curitiba, onde assinou acordos comerciais de US$ 300 milhões com o governador Roberto Requião (PMDB), discursou para dois mil integrantes do MST e, à noite, jantou no Palácio da Alvorada. Em Brasília, Chávez nada contou ao anfitrião Lula sobre o pacto com Morales.

No Exterior, a reação à manobra de Morales veio pela voz da secretária de Estado dos Estados Unidos, Condoleezza Rice. “O continente precisa tomar cuidado com líderes demagogos e autoritários”, cravou. No Brasil, a primeira devolução em tom adequado ao tamanho do golpe da nacionalização partiu do presidente da Petrobras. “Estamos suspendendo qualquer possibilidade de investimento adicional na Bolívia”, afirmou Sérgio Gabrielli. Ele antecipou que não vai aceitar qualquer aumento de preço. Explicou que o contrato que a empresa assinou com o governo do país vizinho – e, na prática, foi rasgado por Morales – impede ações unilaterais, mas permite negociações sobre as condições de exportação, inclusive das fórmulas de preços. A Petrobras começou a operar na Bolívia em 1996, com pesquisas sísmicas. O gasoduto Bolívia-Brasil (Gasbol) foi inaugurado em 1999 e, em abril de 2000, no governo Fernando Henrique, foram assinados com o governo boliviano os contratos de venda de gás. Até então, o maior comprador de gás boliviano era a Argentina. A demanda brasileira é de 40 milhões de metros cúbicos por dia e, em 2010, vai chegar a 99,3 milhões de m3/dia. Para escapar do nacional-populismo de Morales, a Petrobras planeja aumentar a produção de gás no Brasil. Está investindo cerca de US$ 17 bilhões no aumento da produção no campo de Santos, num gasoduto adequado ao mercado brasileiro e na interligação da rede do Sudeste à do Nordeste. Além disso, a empresa está acelerando os estudos sobre o gás natural liquefeito (GNL), vindo de outros países. Mas, qualquer que seja a alternativa, vai demorar. “Não há solução de curtíssimo prazo”, avisa Gabrielli.

Os especialistas, entretanto, criticam duramente o fato de o governo ter permitido que o Brasil ficasse dependente de uma fonte única de abastecimento de gás natural. “Os investimentos na Bolívia são feitos há tempos, mas nessa gestão houve a massificação do uso do gás, inclusive por meio de congelamento de preços”, analisa o economista Adriano Pires, diretor da consultoria Centro Brasileiro de Infra-Estrutura. “Agora, criou-se a incerteza. Vai ter gás? Os preços vão subir?”, pergunta. Gabrielli prefere acreditar que as leis serão cumpridas. “Se isso não ocorrer, a alternativa seria, talvez, pensar em armas de destruição em massa na Bolívia e pedir o apoio do Exército brasileiro”, ironizou.