Internacional

Especial
O agente da mudança
A grande questão a ser respondida com a vitória do presidente barack Obama é se os Estados unidos superaram em defi nitivo o preconceito racial, contra o qual lutaram tantos antecessores

Denize Bacoccina, enviada especial a Washington
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De Abraham Lincoln, além da igualdade, Obama captou a idéia da manutenção da unidade nacional dos Estados Unidos acima dos interesses particulares. O presidente que aboliu a escravidão em 1863 também venceu a Guerra Civil, fazendo prevalecer a União contra os Estados sulistas que queriam se separar. Desde a campanha para o Senado, em 2004, Obama tem se notabilizado por defender o fi m da radicalização bipartidária entre democratas e republicanos, uma prática que mantém permanentemente abertas as feridas da América. “Não existe uma América liberal e uma América conservadora. Existem os Estados Unidos da América”, disse ele em discurso à Convenção Democrata de 2004.
De Franklin Delano Roosevelt, o político democrata que conduziu a nação durante 13 anos dramáticos, Obama resgatou a idéia de recuperação econômica através da ação do Estado, como foi o New Deal – um programa que construiu o welfare state, tirou o país da depressão em que estava mergulhado desde o crash de 1929 e deu a guinada que permitiu aos EUA se tornarem, depois da guerra, a maior potência econômica e militar mundial. Durante o furacão Katrina, por exemplo, Obama criticou a indiferença do governo Bush ao aumento da desigualdade social e pediu uma ação política conjunta dos dois partidos para restabelecer a rede de segurança social dos pobres afetados pela tragédia em New Orleans.
De John Kennedy, o futuro presidente incorporou o espírito de ousadia dos principiantes e o carisma de um jovem político. Embora diferentes na origem, ambos, formados por Harvard, eram novatos na política e disputaram a indicação do Partido Democrata com veteranos – Kennedy contra Lyndon Johnson e Adlai Stevenson; Obama contra Hillary Clinton. E ambos eram jovens e carismáticos e personificavam uma mudança geracional na política que Kennedy chamou de “a passagem da tocha de uma geração para outra”.

Não deixa de ser simbólico também o fato de alguém com um nome tão exótico ter sido eleito presidente dos Estados Unidos. Obama conta que seu nome sempre causava estranheza entre as pessoas. Tanto que seu pai, Barack Obama Sr., adotou o nome “Barry” quando morou nos EUA. E o filho, por conveniência, também passou a ser tratado por “Barry” por conhecidos. Mas o que era engraçado começou a parecer suspeito depois da Guerra do Golfo, em 1991. Afinal, se Barack significava “abençoado” em indonésio, Hussein remetia ao ditador do Iraque, Saddam Hussein, transformado em vilão dos EUA por George Bush, pai. Mas a coisa ficaria pior depois dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, quando Obama passou a soar como “Osama”, uma terrível referência ao líder da Al- Qaeda, Osama Bin Laden. Durante a campanha presidencial, o republicano John McCain explorou sub-repticiamente essa associação ao afirmar que o candidato democrata pretendia negociar com “Estados terroristas”.
Também é sinal dos tempos o fato de que o novo presidente tenha admitido abertamente que fumou maconha e cheirou cocaína quando jovem – embora ele repudie cabalmente a experiência. A revelação não é nova, foi feita no primeiro livro escrito por ele, A origem dos meus sonhos, de 1995. Mas a relação do presidente eleito com seu passado é tão bem resolvida que na campanha deste ano ele chegou a ironizar o ex-presidente Bill Clinton, que uma vez confessou que fumara maconha sem tragar. “Eu traguei”, admitiu Obama. “Não é algo de que me orgulhe, mas nunca entendi essa frase. A questão toda era tragar. Esse é o ponto”, disse.
O que coloca a eleição de Barack Obama no patamar das grandes mudanças históricas é que ela representa a concretização do sonho do grande líder pacifista negro Martin Luther King, paladino contra o racismo. Na célebre Marcha sobre Washington, em 1963, ele disse: “I have a dream” (eu tenho um sonho): o de viver num país onde ninguém seja julgado pela cor de sua pele, mas pelo seu caráter. Isso aconteceu ao longo das últimas décadas com negros como o general Colin Powell, ex-secretário de Estado republicano, que apoiou Obama, a secretária de Estado Condoleezza Rice, que não disfarçou seu contentamento com a vitória, e a apresentadora Oprah Winfrey, que conseguiu mais de um milhão de votos para o democrata. Até o pastor Jesse Jackson, que tentou ser candidato em 1984 e 1988 e chegou a criticar Obama por “falar como branco”, não resistiu às lágrimas ao ver confirmada a vitória do candidato democrata.
A ascensão de Obama remete ainda a outro líder americano, mas este conservador: Ronald Reagan. O presidente republicano chegou à Casa Branca em 1980, quando os Estados Unidos estavam humilhados na cena internacional, com revoluções antiamericanas no Irã, na Nicarágua e no Afeganistão. Reagan investiu pesadamente em Defesa e levou a União Soviética à lona. Dessa maneira, foi um dos grandes responsáveis pela queda do Muro de Berlim e pelo colapso do comunismo, o que deixou o planeta livre da Guerra Fria. Obama vai assumir tendo que restaurar a imagem externa dos EUA, completamente esgarçada na cena mundial depois de oito anos de unilateralismo de George W. Bush.

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Filho de um queniano negro com uma americana branca, Barack Hussein Obama nasceu em 4 de agosto de 1961 em Honolulu, no Havaí, numa época em que o casamento inter-racial era crime e o voto do negro restrito. Em 1964, sua mãe, Ann Dunham, se divorciou e pouco depois se casou com um indonésio, Lolo Soetoro. Três anos depois, eles se mudaram para Jacarta, capital da Indonésia, o maior país islâmico do mundo. Obama estudou em escolas locais como Asisi, onde ele era o único aluno negro entre 30 colegas. Ele conta que um dia viu na revista Life uma foto que o chocou: era um homem de feições negras “com uma estranha palidez antinatural, como se seu sangue tivesse sido drenado da carne”. Ele pensou que fosse um albino, mas se deu conta, ao ler o texto, de que se tratava de alguém que fizera um tratamento químico para clarear a aparência, mas cujo resultado tinha sido um desastre. “Quando cheguei em casa, parei em frente ao espelho e me vi perguntando se havia algo errado comigo”, conta Obama. De volta ao Havaí, morou com os avós maternos – sua avó Tutu, a quem ele considerava mentora, morreu um dia antes da eleição que o consagrou.
Ele foi para Nova York, onde se formou em ciência política em 1983 pela Universidade de Colúmbia. Depois de um breve período como líder comunitário em Chicago, em 1988 Obama ingressou na Harvard Law School. No ano seguinte, foi eleito diretor da revista da universidade, a Harvard Law Review – foi a primeira vez que um negro ocupou tal cargo. Formado em direito, Obama voltou a Chicago, onde foi contratado por um escritório de advocacia e também passou a dar aulas na universidade. Em 1991, casouse com uma colega de empresa, a advogada Michelle Robinson, com quem teria duas filhas: Malia Ann, em 1998, e Natasha (Sasha), em 2001. O passo decisivo da vida de Obama foi dado em 1996, quando resolveu ser político, recusando milhões que poderia ganhar como advogado. Foi eleito para o Parlamento estadual de Illinois, mas quatro anos depois amargou uma fragorosa derrota, quando tentou uma vaga na Câmara dos Deputados. Refezse do revés e, num gesto ousado, lançou-se candidato ao Senado em 2004 atacando a política de Bush no Iraque. Venceu com 70% dos votos e projetou-se nacionalmente.

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Desde então, sua estrela nunca mais parou de brilhar. Com o sucesso, Obama abocanhou uma pequena fortuna (US$ 6 milhões) com os dois livros que escreveu: A origem dos meus sonhos e A audácia da esperança. Com isso, ele e Michelle puderam pagar as dívidas contraídas na universidade e ainda comprar uma casa num bairro nobre de Chicago. Extremamente família, o novo presidente prometeu às filhas que comprará um cachorrinho para levar à Casa Branca. A sede do governo que vai abrigar um presidente negro pela primeira vez na história ganhou esse nome no início do século XIX. Dizia-se que o nome tinha origem numa pintura branca aplicada sobre a estrutura do edifício para esconder os danos causados por bombardeios britânicos da guerra de 1812. Mas historiadores contestam essa versão, alegando que o edifício tinha a fachada branca desde sua construção inicial, em 1798. O nome “Casa Branca” foi oficializado pelo presidente Theodore Roosevelt em 1901.
A partir de agora, e mais ainda depois da posse em 20 de janeiro, os Estados Unidos reais vão encarar seu herói que fez uma trajetória de anti-herói. Afinal, o racismo não acaba com a eleição de um presidente negro, embora analistas de prestígio como o comentarista do New York Times Thomas Friedman tenham dito que a Guerra Civil americana terminou com a eleição do primeiro negro à Casa Branca. A economia não melhora com discursos eloqüentes. E a máquina de guerra americana vai continuar a exigir um novo front de batalha. Mas, como anti-herói, Obama é um daqueles presidentes carismáticos com ligação direta com os eleitores, muito maior do que o vínculo com a máquina partidária, os gênios de Wall Street ou as megacorporações da indústria. É essa liberdade que faz dele um agente de mudanças. É impossível saber quanto vai acertar. Mas o único direito que Obama não tem é o de não se mexer, não inovar, não criar.