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"O brasileiro acordou para a causa dos santos"
Irmã Célia Cadorin, referência em canonizações no Brasil

A junta médica formada por especialistas das cidades de Varginha, Belo Horizonte (MG) e São Paulo debruçouse sobre o caso de Ana Lúcia Meirelles Leite e sentenciou: a mineira de Caxambu tinha um buraco no coração e precisava ser operada às pressas, pois havia risco de morte. Corria o ano de 1995, Ana Lúcia estava com 49 anos e os médicos sabiam que lutavam contra o tempo.

A dona de casa tinha uma doença grave conhecida como CIA, sigla para comunicação intra-atrial, que fazia o sangue venoso se misturar ao arterial, dificultava a oxigenação sanguínea e sobrecarregava o pulmão. A cirurgia foi marcada para o dia 17 de julho, na capital paulista. Um dia antes da operação, Ana Lúcia teve febre altíssima e o procedimento foi adiado em uma semana.

A partir daí, ela começou a apresentar uma melhora inexplicável. "A falta de ar e o cansaço que eu sentia e me impediam de fazer tudo diminuíram sensivelmente", lembra Ana Lúcia, que abandonou a ideia da cirurgia. Apenas em abril de 1996, por insistência do médico Ítalo Nicollielo, o primeiro a fazer seu diagnóstico, ela se A submeteu a uma bateria de exames diante do mesmo corpo clínico para avaliar, novamente, a necessidade de uma intervenção. A equipe constatou o fechamento da cavidade e a cura. "Não existe explicação científica para o que aconteceu", atesta Nicollielo.

Todos os créditos para essa história com final feliz são endereçados a uma mulata analfabeta, filha de mãe escrava e pai desconhecido, que ganhou fama na Minas Gerais do século XIX por seus conselhos sábios, sua devoção a Nossa Senhora e as graças que distribuía ao povo da região. Essa mesma mulher tem grandes chances de ser a primeira santa genuinamente brasileira – Madre Paulina, canonizada em 2002, realizou suas obras no País, mas é italiana.

Nascida Francisca de Paula de Jesus, na cidade de São João Del Rey, em 1810, venerada pelos fiéis como Nhá Chica, foi a ela que Ana Lúcia recorreu suplicando pela cura. "Rezava: ‘Minha Nhá Chica, me deixa viver mais um pouco", lembra. "E ela deixou." Agora, a recuperação da mineira de Caxambu, com direito a depoimento do médico Ítalo Nicollielo, será anexada ao processo de canonização de Nhá Chica, já no Vaticano. O caso está sendo considerado, pelos postulantes da causa, como o primeiro milagre da mulata que viveu em Baependi.

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Nhá Chica não é a única nessa corrida rumo à santidade. Existem outros candidatos a santo espalhados pelo Brasil. Nem todos estão tão bem encaminhados quanto ela, que é serva de Deus (leia quadro à pág. 95) e já tem parecer favorável do Vaticano quanto a um milagre. Mas o aumento dos processos nos últimos anos mostra que uma onda de canonizações nacionais se avizinha.

Não há um registro oficial de quantos processos de reconhecimento de santidade existem, já que cada uma das 258 dioceses do País se encarrega de tocar os seus. Sabe-se, porém, que, atualmente, há cerca de 60 causas em andamento. A estimativa é de irmã Célia Cadorin, 81 anos, a maior autoridade do País no assunto, responsável pela canonização de Madre Paulina, confirmada em 19 de maio de 2002, e de Frei Galvão, em 11 de maio de 2007.

A promoção de Nhá Chica, que faria companhia no mais alto dos céus a Frei Galvão, atualmente o único representante genuinamente brasileiro, começaria a fazer justiça à fé nacional. O Brasil é o maior país católico do mundo, com 145 milhões de fiéis. A Itália, por exemplo, com mais de 100 santos, tem apenas 57,7 milhões de devotos.

Questionada sobre as razões dessa distorção estatística, irmã Célia, que morou 20 anos em Roma, é categórica. "No Brasil ainda falta gente qualificada que entenda a importância e aceite a complexidade da burocracia da Santa Sé", diz. Ela mesma admite que, no começo da carreira como postuladora, há 26 anos, estranhava o rigor da Congregação para a Causa dos Santos, órgão do Vaticano que estabelece as regras para o processo de canonização.

Mas hoje entende. "Os santos são referências e a canonização é irrevogável", diz. "Todo cuidado é pouco quando o que se faz tem consequências eternas." O caminho, portanto, tem que ser difícil. Mas difícil não é impossível. E foi isso que a religiosa mostrou quando conseguiu canonizar Madre Paulina e Frei Galvão. "O brasileiro acordou para a causa dos santos", resume.

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Não existe explicação científica para o que aconteceu com Ana Lúcia"
Ítalo Nicollielo, médico

Baependi, localidade no sul de Minas onde Nhá Chica construiu sua obra, está mais do que desperta. Embora já não participe da vida da cidade há 114 anos – ela morreu em 1895 -, as histórias da mulata milagreira continuam vivas por lá.

No município de 20 mil habitantes, onde as mortes são anunciadas pelo sistema de altofalantes instalados em duas igrejas, os mais idosos permanecem como guardiões dos casos mais interessantes da mulher que, de tão santa, chegava a levitar, garantem seus devotos. O excomerciante César Solmé, 93 anos, conta que recebeu pelo menos duas graças. Uma foi ter sobrevivido a um ataque do coração e outra foi ver o filho sair ileso de um grave acidente. "Componho sonetos e músicas para ela", afirma.

Até a canonização de Madre Paulina e, sobretudo, de Frei Galvão, o brasileiro mantinha uma distância respeitosa dos seus santos de devoção. Afinal, boa parte deles viveu uma realidade tão diferente, em um passado tão distante, que era impossível estabelecer vínculos que ultrapassassem o plano da fé, essa sim universal.

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Com a canonização de Frei Galvão, as pessoas viram que um homem que teve a vida marcada pela história nacional – seu pai o matriculou na ordem franciscana temendo a perseguição dos jesuítas pelo marquês de Pombal, por exemplo – podia ser santo.

E essa aproximação também ajudou a desmistificar a figura do santificado, tido como uma pessoa perfeita. Esses dois fatores foram decisivos para a explosão que se vê nas candidaturas hoje. De repente, o pároco da cidade, a freira e até as pessoas comuns passaram a ser vistos como candidatos em potencial. E figuras que eram santificadas pelo povo, mas ignoradas pela hierarquia católica, começam a buscar seu lugar no céu.

Um dos melhores exemplos de força da fé popular vem do Ceará e tem um nome bastante conhecido. Padre Cícero ou simplesmente Padim Ciço. Ele nasceu Cícero Romão Batista, no município de Crato, em 1844, e foi político e líder religioso ao mesmo tempo. A fé em torno de sua figura é tamanha que se criou uma espécie de mitologia própria, com histórias que beiram a fantasia.

"Isso pode ser negativo", ressalva irmã Célia. Segundo ela, quando a história de um candidato a santo é aumentada na fé popular sem que haja documentação para prová-la, fica difícil dar início a um processo de canonização. "Mas sei que tem gente trabalhando no Ceará para levantar documentação do padre Cícero", revela a religiosa. "E ele é um forte candidato."

Segundo os especialistas, a lógica da santificação é simples: quanto mais postulantes, mais chances. Afinal, como disse o papa João Paulo II, o pontífice que mais canonizou santos – 482 em 26 anos de pontificado -, em sua visita ao Brasil em 1991, o Brasil não precisa só de santos, o Brasil precisa de muitos santos.

A diocese de São João da Boa Vista, no interior de São Paulo, seguiu à risca a orientação papal. Poucos casos estão tão bem documentados quanto o do padre Donizetti, que foi pároco de Tambaú, cidade de 22 mil habitantes distante 270 quilômetros da capital paulista, de 1926 a 1961. O processo pela canonização do religioso, nascido Donizetti Tavares de Lima, em Santa Rita de Cássia, Minas Gerais, foi aberto em 1982.

Ele sofreu algumas interrupções, mas foi retomado com força depois da canonização de Frei Galvão. Hoje, Tambáu respira padre Donizetti. Casas, lojas, hotéis, restaurantes e as onipresentes sorveterias locais exibem, orgulhosos, a imagem do candidato a santo, que teve seu processo encaminhado a Roma no dia 14 de setembro. "Em Tambaú, falar das graças do padre parece conversa de boteco", brinca Anderson Donizetti Ramos da Silva, 36 anos, sobre o assunto preferido da população local.

Estima-se que hoje, no Brasil, existam 2,7 milhões de Donizettis com menos de 45 anos. Na cidade, é verdade incontestável que todos foram batizados para homenagear o pároco. Há até a Missa dos Donizettis, feita anualmente no Santuário Nossa Senhora Aparecida. Donizetti Batista Prado, 53 anos, empresário da cidade, é presença garantida.

"Minha mãe tinha sofrido complicações durante a gravidez da minha irmã, nove anos mais velha do que eu", explica. Os médicos disseram que Ilda Prado, hoje com 82 anos, não poderia mais ter filhos. Mas, contrariando os prognósticos, ela engravidou. Prado veio ao mundo em 3 de janeiro, a mesma data de nascimento do pároco, que foi seu padrinho de batismo.

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"São tantas histórias de graças alcançadas que temos dificuldade para acompanhar os relatos", conta José Adílson Pieruzzi, 70 anos, presidente da Associação de Fiéis do Padre Donizetti.

Empresário, ele dedica seu tempo à administração da associação que reúne não só histórias, mas também fundos para a canonização do religioso. Fazer um santo, além de dar trabalho, custa caro – pelo menos R$ 90 mil. "Mas estamos em uma situação confortável", diz Pieruzzi. Segundo suas estimativas, a associação tem cerca de 400 filiados que pagam uma taxa anual de R$ 25 e se comprometem a ajudar sempre que há alguma despesa imprevista. "Estamos com R$ 57 mil em caixa", conta.

Transformar um homem em santo é um processo demorado, cansativo e meticuloso (leia quadro à pág. 94). São, pelo menos, 12 anos de dedicação para alçar uma pessoa a essa condição. E quase nunca se executa todo o trabalho de maneira contínua. Os processos sofrem interrupções das mais variadas naturezas. Às vezes, o postulador passa anos em busca de um documento.

Outras, o dinheiro de quem financia a causa – uma ordem ou congregação religiosa ou doações de devotos para a diocese – acaba. Não raro, o próprio postulador morre e o Vaticano ordena o fechamento até que alguém com competência reconhecida se disponha a assumir o processo. Um exemplo emblemático é o da canonização do beato José de Anchieta.

Foram 378 anos de trabalho marcados por interrupções que chegaram a durar mais de 100 anos. "A Igreja não tem pressa", diz irmã Célia. A Igreja também é democrática no acolhimento das candidaturas. Há crianças entre os postulantes, por exemplo. Uma delas é Antônio da Rocha Marmo, que nasceu em 1918 na capital paulista e morreu de tuberculose aos 12 anos. "Estamos esperançosos", afirma o padre Paulo Afonso Alves Sobrinho, vice-postulador do processo.

"Quando o caso não exige relatos de quem viu o candidato a santo em vida, as coisas fluem com mais tranquilidade", explica. A onda de devoção em torno de Antoninho existe desde a década de 30 – foi ela que empurrou a causa adiante. Mas só em outubro de 2007 começou o processo formal, acolhido pelo Vaticano: Antoninho já é servo de Deus. Irmã Dulce, a freira baiana visitada em duas ocasiões pelo papa João Paulo II, é outra que está bem encaminhada.

A religiosa que nasceu em 1914 e morreu em 1992 foi declarada venerável em janeiro deste ano. Agora basta comprovar um milagre para que ela se torne beata. "Temos duas histórias fortes que contam curas inexplicáveis", revela Oswaldo Gouveia, que coordena a divisão de Memória e Cultura das Obras Sociais Irmã Dulce (Osid). Segundo Gouveia, os dois casos escolhidos foram pinçados de um catálogo de quatro mil graças registradas no memorial instalado na Bahia.

Como o Vaticano ainda não avaliou os casos, eles permanecem em sigilo. Mas sabe-se que uma das histórias trata de uma complicação aparentemente irreversível durante um parto. "A mãe teve hemorragia grave e estava desenganada", conta Gouveia. A mulher, então, invocou irmã Dulce e se salvou.

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Manter a estrutura que um candidato a santo requer em seu quartelgeneral também não é fácil. Que o diga a pequena Tambaú. Semanalmente, a casa de padre Donizetti é visitada por uma média de três mil romeiros.

Todos disputam relíquias do padre. Quando vivo, o sacerdote não aprovava essa reverência. Pedia que quem recebesse graças invocando seu nome as atribuísse a Nossa Senhora. Até que, em 1954, um vendedor de vinhos chamado Constante Marcassa visitou o padre reclamando de fortes dores no joelho.

Com uma bênção, a dor se foi. "Como comerciante, ele viajava muito e espalhou a história", diz Francisco Donizetti Sartori, que integra a comissão histórica pela causa. Em pouco tempo, Tambaú virou um centro de romarias. No auge, em 1955, um rio de gente desaguava dos trens da linha Mogiana, inundando com 30 mil romeiros a cidade que então tinha pouco mais de 18 mil habitantes. A maioria das curas atribuídas a ele teria se dado durante essas peregrinações. São milhares de muletas, centenas de garrafas de aguardente, óculos de grau e partes do corpo humano em cera guardados na casa como testemunhos dos milagres.

Apenas duas histórias de milagres, comprovadas por centenas de documentos e análises médicas e teológicas, são necessárias para o Vaticano referendar a santidade de um candidato. Mas, normalmente, antes de o primeiro papel pousar na Cúria Romana, o povo já alçou seu santo ao altar. Caso do padre Bento Dias Pacheco, filho único de família rica que nasceu em 1819, em Itu, a 90 quilômetros da capital paulista.

Para ele, a vida se resumiu a banhar, alimentar e limpar as feridas de um grupo de párias: os leprosos. "No começo, padre Bento tinha nojo dos infectados", admite Maria Claudete Camargo, estudiosa do religioso. Mas ele superou os preconceitos e, aos poucos, tomou gosto pelo trabalho. "Essa é uma história de superação dos próprios limites", diz o padre Francisco Rossi, vice-postulador da causa do padre Bento.

Em pouco tempo, o sacerdote já abraçava e beijava os doentes, com quem dividia o mesmo teto. Apesar do contato direto, nunca contraiu a doença e morreu aos 92 anos. Seu último desejo foi ser enterrado no cemitério dos leprosos. "A gente sentia um misto de admiração e medo da história dele", diz Maria Lúcia Caselli, 76 anos, moradora de Itu desde 1938.

Em agosto de 1985 foi aberto o processo pela canonização do padre, na diocese de Jundiaí. Mas, como nos outros casos, foi só depois da canonização de Frei Galvão que a causa engrenou. "Em outubro de 2007 enviamos toda a documentação que reunimos ao Vaticano", afirma padre Rossi. Foram 27 pastas com documentos. Para muitos, tanto trabalho já deveria ter dado frutos. "Se ele fosse de alguma ordem ou congregação, as coisas talvez andassem mais rapidamente", polemiza uma admiradora. Mas paciência é fundamental em casos como esse.

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A irmã Célia sabe disso. Embora não participe, oficialmente, de todos os processos que correm hoje no Brasil, ela é invariavelmente consultada por quem quer dar início a uma canonização.

Conhecida como a fazedora de santos, a religiosa é referência no meio e não se incomoda em receber a todos. Mas hoje ela mesma reconhece as dificuldades que tem para trabalhar. Com problemas de locomoção desde um acidente sofrido em 2001 – ela se movimenta com um andador -, a freira se esforça para passar tudo o que aprendeu aos futuros postuladores brasileiros.

A preocupação em criar uma onda de canonizações é tamanha que até o final do ano espera lançar uma apostila com cerca de 40 páginas detalhando, em português, o passo a passo para fazer um santo. "Com o avanço da ciência, que tem explicação para tudo, está cada vez mais difícil provar milagres e fazer santos, mas é um trabalho que vale a pena", diz.

A julgar pela quantidade de candidatos à santificação no País, não é só ela que pensa assim. Com trabalho sério dos postuladores e boa vontade do Vaticano, o Brasil está bem encaminhado. Afinal, tudo indica que nossos santos de casa fazem milagre sim. Só falta o reconhecimento formal.

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