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Todos os dias, às 11 horas, o barulho de explosões e de tiros toma conta da antiga base comunista de Yan’an, na província chinesa de Shaanxi. Com uniformes azuis de algodão, ao estilo do líder Mao Tsé-tung, homens e mulheres do Exército Popular de Libertação combatem os nacionalistas de Chiang Kai-chek, que governou o país entre 1928 e 1949.

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Com direito a bandeiras vermelhas tremulando, o enfrentamento diário em Yan’an, à base de falsa munição, é uma encenação de batalha ocorrida em 1947, na região que os chineses consideram o berço do comunismo. Acomodados nas imediações, turistas pagam o equivalente a R$ 17 para assistir ao espetáculo. Por mais R$ 2,5, podem participar da batalha, devidamente uniformizados.

A batalha de Yan’an é uma das atrações do chamado turismo vermelho, a visita a lugares emblemáticos do movimento que culminou com a criação da República Popular da China em 1949. Apenas este ano, mais de 300 milhões de turistas, a maioria chineses, devem visitar cidades como Yan’an e Shaoshan, no sudeste do país, onde nasceu Mao.

A transformação de lugares históricos em destino turístico faz parte da estratégia de reafirmar a legitimidade do Partido Comunista, desencadeada a partir de 2003, quando o presidente Hu Jintao assumiu o poder. O auge dessa política ocorreu na quinta-feira 1o, quando os 60 anos da revolução foram comemorados em um espetáculo midiático dirigido pelo cineasta Zhang Yimou, o mesmo que encenou as cerimônias de abertura e de encerramento dos Jogos Olímpicos em 2008.

Depois de quatro meses de ensaios, mais de 200 mil figurantes deram um show de harmonia e precisão. Engalanada com 56 enormes colunas vermelhas e douradas, a Praça da Paz Celestial, em Pequim, foi palco de uma parada militar que envolveu cinco mil soldados, 150 aviões e 540 tanques. Para não deixar dúvidas sobre o seu poderio militar, o governo chinês exibiu 108 mísseis terrestres, marítimos e aéreos.

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Espalhados pela capital, telões transmitiram a cerimônia repleta de pirotecnias. Ao passar a tropa em revista, Jintao usava trajes similares aos de Mao. Na sequência, discursou na mesma tribuna da qual o líder falecido em 1976 proclamou a República Popular.

Nenhuma referência, obviamente, foi feita ao massacre ocorrido na praça há 20 anos, quando estudantes se manifestavam pela abertura do regime. Mas o rigoroso esquema de segurança montado para o aniversário da revolução – que é comemorado a cada dez anos – confirmou que a flexibilização chinesa se restringe à economia.

Os atuais "inimigos" do regime são os terroristas uigures, os separatistas tibetanos e os ativistas da Falun Gong, um movimento de inspiração budista considerado ilegal pelo regime. Por causa das potenciais ameaças, os moradores da região não puderam sequer abrir as janelas de seus apartamentos, assim como os hotéis foram proibidos de receber hóspedes.

Convocados a acompanhar o espetáculo "do conforto de seus lares", a maioria do 1,3 bilhão de chineses seguiu a recomendação. Outros 200 milhões preferiram viajar pelo país, gastando nos oito dias de feriado o equivalente a R$ 26,2 bilhões, de acordo com estimativa da Administração Nacional do Turismo. Em Yan’an, esperava-se que pelo menos dois mil visitantes participassem por dia da encenação da batalha de 1947, contra a centena registrada habitualmente nos fins de semana.

Como marco da festa dos 60 anos, o museu da cidade, criado em 1950, ganhou nova sede e agora se espalha por 30 mil metros quadrados. Nele não há registros de episódios trágicos da história recente do país, como O Grande Salto, o incentivo à industrialização que penalizou a agricultura entre 1958 e 1960, provocando fome generalizada.

Tampouco é retratada a Revolução Cultural, de 1966 a 1976, que mergulhou a China no caos e na repressão. Em compensação, o afluxo de turistas para Yan’an e outros pontos do "roteiro revolucionário", todos situados em regiões pobres e pouco urbanizadas, está levando recursos e progresso para as cidades. Como costumava repetir Deng Xiaoping, o sucessor de Mao que criou o chamado socialismo chinês, "enriquecer é glorioso".i146293.jpg