Nesses tempos politicamente corretos, pode ser que alguém queira me pendurar num poste pelo que vou escrever agora. Correrei o risco. Fiquei, sim, bem alegrinha com a notícia de que não dividimos mais o mesmo planeta com o baixinho norte-coreano Kim Jong-il. Quando vi aqueles pobres coreanos num festival de desespero e luto nas ruas de Pyongyang, lembrei-me do quanto estão todos treinados para o grande teatro coletivo da revolução.

Estive na Coreia do Norte em 2005. Depois de intrincadas negociações, conseguimos da recém-inaugurada Embaixada da Coreia do Norte em Brasília autorização para que o cinegrafista Edilson Rizzo, a produtora Mônica Gugliano e eu visitássemos o país. Estamparam em nossos passaportes os vistos de números 1, 2 e 3 emitidos ali para jornalistas. Foram os primeiros e os únicos.

Fomos recebidos no aeroporto por quatro cães de guarda do governo. Todos se chamavam Kim. Como Kim Jong-il. Como o pai dele, Kim il-Sung, que não morreu em 1994. Sim, ele não morreu, corrigiu-me um dos Kim quando citei o fato, tentando me lembrar da data exata.

O pai da Nação, Salvador dos Oprimidos, Estrela da Coreia, estará sempre vivo em nossos corações!, bradou ele com cara de pouquíssimos amigos.

Isso foi logo depois de um dos troglo-Kim ter confiscado nossos passaportes e passagens aéreas, além de nos orientar a nunca, sob nenhuma hipótese, tentar conversar com nenhum cidadão.

Eles são muito tímidos e detestam ser incomodados, justificou outro dos Kim. Os Kim eram incansáveis nas tarefas de mentir e de estar sempre por perto. Bem perto. Durante toda a madrugada, revezavam-se de plantão na portaria do hotel para garantir que jamais saíssemos desacompanhados. Durante o dia, nosso roteiro, elaborado por eles, incluía todo tipo de monumento histórico da capital-cenário. Até um Arco do Triunfo local, cinco metros mais alto que o de Paris, ressaltou um dos mala-Kim.

De um lugar a outro não gastávamos mais de cinco minutos trafegando nas avenidas largas e vazias. Sempre passando ao lado de obras impecáveis do stalinismo arquitetônico. Conjuntos habitacionais austeros, praças gigantescas e, no alto dos prédios, apenas propaganda partidária: “O Líder Kim il-Sung está conosco!”, brilham frases em neon vermelho.

A maratona só cessava na hora sagrada do dia: a hora do almoço. Nunca tive coragem de perguntar que carne seria aquela que eles devoravam nos restaurantes também vazios. Inclusive porque nunca vi nenhum cachorro perambulando pelas ruas. Fiquei só no arroz. Eles se fartavam.Tinham a fome do racionamento. Aliás, outro assunto proibido.

Os coreanos vivem na fartura, sentenciou um terceiro Kim, encerrando o assunto. Mas e o racionamento de energia?, perguntei eu depois de vivenciar o apagão que se repetia todas as noites.

As pessoas dormem cedo, temos energia de sobra nas nossas hidrelétricas!, respondeu Pinóquio-Kim.
Quantas hidrelétricas? Incontáveis! Incontáveis!

E ponto-final. É patológico, pensei eu. Concluo agora que era medo mesmo. Veja o caso do funeral do esquisito-Kim. Leio agora que quem não se descabelou o suficiente vai para um campo de trabalhos forçados no interior do país. Eu, com certeza, seria a primeira da fila. Desconfio que as altas autoridades coreanas não tenham gostado muito da série de reportagens que produzimos por lá.

E que não gostariam nem um pouco deste artigo.