chamada.jpg
LIMPO
Após anos embalado pela “pedra” e por opioides, Malard se dedica a palestras de prevenção

O crack, um mal presente em 98% dos municípios brasileiros, ganhou a atenção efetiva do poder público na semana passada, com o anúncio, na quarta-feira 7, pela presidenta Dilma Rousseff, de um plano de ação do governo federal de enfrentamento a essa e outras drogas. Serão destinados, nos próximos três anos, R$ 4 bilhões para a repressão ao tráfico, para a prevenção ao uso de entorpecentes e para o tratamento de viciados. Algumas ações divulgadas são polêmicas, como a internação involuntária de dependentes. Todavia, especialistas da área reconhecem o destaque dado pelo governo ao cuidado com o usuário – entendido como dependente químico, não como marginal. Na semana de divulgação do plano, ISTOÉ entrevistou cinco ex-usuários do crack, de diferentes partes do País, que, atualmente, estão à frente de experiências de sucesso contra essa droga tão corrosiva e, muitas vezes, letal.

No Sul do País, em Cachoeirinha, cidade de 118 mil habitantes vizinha a Porto Alegre, o exemplo de superação vem de dentro da prefeitura. Ocupa o posto máximo do executivo municipal, desde 2008, Luiz Vicente da Cunha Pires, 49 anos, um ex-usuário de crack, cocaína e maconha. De viciado a figura pública no enfrentamento às drogas, Pires trilhou um longo e penoso caminho. Viu seu bem-sucedido escritório de contabilidade falir, em 1992, após seus clientes descobrirem que ele desviava dinheiro de impostos para pagar dívidas com traficantes. Pela mesma razão, foi julgado e preso em 1997. Ao sair da detenção, depois de três anos recluso, decidiu se empenhar para evitar que outras pessoas chegassem ao mesmo patamar de dependência que ele havia atingido. 

Primeiro, tornou-se voluntário em projetos de auxílio a dependentes químicos. Não contente, decidiu engendrar-se pela carreira política e se elegeu vereador em 2004. Na eleição seguinte, mirou a prefeitura. Ganhar o pleito, para Pires, foi uma vitória sobre o preconceito. “Quase todo mundo tem um familiar ou pessoa próxima que se envolveu ou está envolvida com as drogas, seja cocaína, seja crack ou álcool”, diz. “E você sabe que essa é uma pessoa boa, mas que ela vive um momento de desvio.” Comprometido com a plataforma de campanha, o prefeito inaugurou, em 2010, a primeira comunidade terapêutica pública do País – antes o município comprava vagas para o tratamento de usuários em instituições particulares. A experiência-modelo foi apresentada neste ano no Congresso à Subcomissão Temporária de Políticas Sociais sobre Dependentes Químicos do Senado.

 

img.jpg
DÍVIDA
Depois de se viciar aos 16 anos, Blota elegeu os adolescentes como seu público prioritário

A história do ex-usuário que se livrou das drogas e agora atua para combatê-las se repete em Viana, no Espírito Santo. Adriano Pires, 39 anos, coordena a comunidade terapêutica Horta de Vida, que recebe até 20 usuários por mês. Na década de 90, porém, essa mesma energia era desperdiçada gerindo o tráfico em Cachoeiro de Itapemirim. Pires sabe que não é simples largar o crack, ainda mais em um cenário de expansão ao acesso à droga. “Noventa e nove por cento das pessoas que nos procuram usam crack, várias delas combinando-o com outras drogas”, diz. Para recuperar o usuário, defende, é preciso agir com rapidez. “O crack é mais potente que a cocaína, mas o efeito é breve. Por isso as pessoas usam com mais frequência, o que as torna dependentes rápido.” No projeto, os dependentes ficam de seis a nove meses no sítio, onde fazem trabalhos no campo e recebem apoio para repensar valores e possibilidades de vida. Drogas são veementemente proibidas – lícitas ou não.

Controlar-se durante o início da desintoxicação é outro desafio que os ex-viciados conhecem bem. Quando o corpo em abstinência clama por drogas, o dependente precisa de muito apoio. É o que faz Roberto Gomes Nascimento, 26 anos, conselheiro na Fazenda da Paz, comunidade terapêutica a 20 minutos de Teresina (PI). Quem o vê, sereno e firme junto aos internos, não imagina que há pouco mais de um ano era ele quem vivenciava aquela situação. Dependente de crack desde os 20, Nascimento viu, durante os cinco anos do vício, família e amigos se afastarem. “Nem eu acreditava mais que conseguiria largar as drogas”, afirma. Foi quando chegou à Fazenda. Não era a primeira vez que tentava tratamento. Anos antes, passara 20 dias internado em uma clínica psiquiátrica, sem resultados. O que aconteceu de diferente que lhe permitiu afastar-se do cachimbo? “Tive uma sensação de estranhamento quando cheguei aqui e encontrei ex-usuários à frente do trabalho”, conta. “Senti-me instigado a saber como aquelas pessoas tinham conseguido mudar de vida.” No projeto, aprendeu a cozinhar, a plantar e a fazer pequenos serviços do campo – como consertar cercas e capinar o pasto. Essas atividades, ele agora ensina para quem chega para o tratamento.

Os exemplos de Piauí, Espírito Santo e Rio Grande do Sul não são únicos. Têm ganhado força as iniciativas comandadas por ex-viciados no crack. O modelo busca inspiração em outro, mais antigo, surgido para o controle do alcoolismo. As primeiras experiências de ajuda mútua para pessoas com problemas relacionados à bebida são de 1840, protagonizadas pelo Washington Temperance Society. No século seguinte, a metodologia ganhou força com a criação dos Alcoólicos Anônimos, em 1935. Para o coordenador do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Dartiu Xavier, se por um lado apenas o ato de usar drogas não capacita ninguém a tratar viciados, por outro, são muito satisfatórios os resultados obtidos quando ex-usuários se formam para trabalhar com dependentes. “Eles falam com a propriedade de quem viveu a situação e o relato é semelhante ao de quem está buscando o tratamento”, completa Antonio de Pádua Serafim, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP).

img4.jpg
PIONEIRA
Cachoeirinha (RS), a cidade em que Pires é prefeito, é o primeiro
município brasileiro a inaugurar uma comunidade terapêutica pública

Vicente Pires (com chimarrão) foi viciado em drogas por 18 anos, viu seu negócio ruir
e ficou preso por causa do vício. Quando submergiu do inferno, decidiu ajudar os
outros e se elegeu prefeito, tendo como plataforma o enfrentamento aos entorpecentes

“Quando você vive a dependência, tudo o que quer é que mais ninguém passe por isso”, justifica João Blota, empresário paulista de 36 anos. Blota foi um dos primeiros brasileiros a provar o crack, em 1990, com apenas 16 anos de idade. “Nem existia para comprar. Um amigo que tinha voltado dos Estados Unidos aprendeu lá uma receita caseira e nos ensinou”, lembra. Até os 22 anos, usou o cachimbo ininterruptamente. Com um consumo diário que beirava 40 pedras, ele considera um milagre estar vivo e “limpo” desde 2000. De lá para cá, deixou de ser o jovem desfigurado pelo vício que vagava pelas noites paulistanas atrás de pedra para se tornar dono de agência de publicidade. “Nem eu sei explicar como as coisas deram tão certo em tão pouco tempo”, diz. Blota transformou o que considera “sorte durante a recuperação” em uma espécie de dívida social que paga por meio de palestras para alunos da rede pública. Para custear as viagens, tira dinheiro do próprio bolso e da renda obtida com a venda do livro “Noia” (Editora 300), obra em que relata sua trajetória. Por mês, visita em média seis colégios, onde conversa com meninos de 12 a 17 anos.

Informação também é a arma do mi­neiro Daniel Malard, 35 anos. Na bagagem, traz a experiência de quem provou 15 tipos de entorpecentes, agora reunida no livro “Planeta Droga” (ainda não lançado). Viciado em crack e em opioides, Malard passou por um processo penoso para se livrar do vício. Só parou depois de três internações. Os anos de convívio com diferentes métodos de tratamento o tornaram um crítico dos modelos vigentes. Sua cruzada atual é pela inclusão de atividades físicas, estudo e aconselhamento individual nas clínicas. Junto a uma comunidade cristã, ele dá palestras em escolas e empresas. “Sei que quando a gente se envolve com drogas o faz por um vazio existencial”, fala. “O que tento fazer é mostrar que há outras formas de preencher esse buraco sem ser por meio de entorpecentes.” Tem dado certo.

img1.jpg

img2.jpg

 

 

 

 

 

 

img3.jpg