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A primeira coisa que chama atenção ao entrar no apartamento do ex-professor e crítico literário Antonio Candido de Mello e Souza, 93 anos, situado na região dos Jardins, em São Paulo, são as estantes de livros. Elas dominam a parede da sala, pontuadas por telas e desenhos de Tomie Ohtake, Lothar Charoux e Fayga Ostrower, podem ser vistas através da porta aberta de um quarto e se estendem pelos outros aposentos do espaçoso imóvel. Antonio Candido não sabe calcular quantos volumes acumulou em tantos anos de estudo e produção acadêmica que fizeram dele um dos maiores intelectuais vivos da cultura brasileira. Sabe apenas que tem se desfeito de muitos livros. Para a Universidade de Campinas (Unicamp), da qual coordenou o Instituto de Estudos de Linguagem, destinaram-se mais de dez mil obras. Agora uma nova leva deve ir para a Universidade de São Paulo (USP), com a qual tem ligações históricas: foi onde se formou em ciências sociais e destacou-se por mais de três décadas no curso de teoria literária como mestre e orientador de uma grande geração de escritores e ensaístas. Na sala do apartamento ficam, segundo seu comentário irônico, os livros para impressionar visitas, encadernados em capadura e fios dourados. Antonio Candido aponta as primeiras edições – completas – de Oswald de Andrade e Mário de Andrade, com quem conviveu, e revela a “proustiana” que tanta inveja dava ao amigo e bibliófilo José Mindlin, para quem o crítico tinha a maior coleção de obras do (e sobre) escritor francês Marcel Proust. Ele não indica, contudo, a sua própria e caudalosa bibliografia, composta de 18 livros, relançada recentemente.

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POLÍTICA
O apoio a Lula no lançamento de um livro na USP em 1994: membro fundador do PT

Antonio Candido, que nasceu no Rio de Janeiro, mas se considera mineiro, é assim: não aprecia as homenagens, costuma fugir de premiações e gosta de se manter longe dos holofotes. Atualmente não concede mais entrevistas, pois considera encerrada a sua atividade intelectual. Oficialmente sim. Durante esses últimos anos, no entanto, ele acompanhou a reedição de sua obra e, no ano que vem, deve preparar uma antologia de textos do crítico Álvaro Lins e fará a introdução. Com o mesmo gesto de generosidade que posterga decisões passadas, ele quebra a reclusão serena em que vive e recebe de ISTOÉ o prêmio de Brasileiro do Ano na área de Cultura. Membro fundador do Partido dos Trabalhadores e socialista desde a juventude, quando se opôs à ditadura do Estado Novo, o homem público atuante também na política se isolou dos assuntos e debates culturais. O pensador, contudo, faz o que mais gosta: ler. Ou melhor, reler. Proust, que descobriu na juventude, quando ainda morava em Poços de Caldas, em Minas Gerais, e foi companhia da vida inteira, não é mais sua prioridade. Hoje, Antonio Candido prefere dedicar seu tempo a Eça de Queiroz e Graciliano Ramos, todos eles alvo de seus estudos no passado, e a escritores menos conhecidos, dos quais aprecia um romance ou outro, caso do francês Julien Gracq e do italiano Dino Buzzati. À frente de todos, porém, figura Machado de Assis, cuja obra, para ele, é inesgotável, não tem fim.

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APOSTA
Com o poeta João Cabral de Melo Neto em 1994: obra elogiada no início de carreira

A sombra de Machado está na origem de seu livro mais famoso, “Formação da Literatura Brasileira”, lançado em 1959, que se posiciona no mesmo patamar de “Casa-Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, e “Formação do Brasil Contemporâneo”, de Caio Prado Júnior, todos muito bem-sucedidos na tentativa de “compreender o País”. Fruto de dez anos de trabalho, o estudo traça a linha evolutiva da produção literária a partir do arcadismo e do romantismo, herdeiros das letras ibéricas, até desembocar nesse momento de total autonomia nacional revelado pela escrita de Machado de Assis. E aqui aparece outro traço da personalidade singular de Antonio Candido: a coragem de romper com o estabelecido. Por trás de sua aparência de nobre do século XVIII (característica apontada pelo filósofo Roberto Romano), ele sempre foi movido pela busca do novo, mas sem nunca perder de vista o movimento oposto que integra a novidade à tradição. “Combate a todas as formas de pensamento reacionário” era o mote de seu grupo na revista “Clima”, criada em 1941 por ele e por Paulo Emílio Salles Gomes, Lourival Gomes Machado, Décio de Almeida Prado, Ruy Coelho e sua futura mulher Gilda de Moraes Rocha. Ao passar ao jornalismo como crítico literário no jornal “Folha da Manhã”, em 1943, ele teve sensibilidade – e firmeza – para apontar valores em estreantes como a romancista Clarice Lispector e o poeta João Cabral de Melo Neto, de quem reconheceu o rigor da escrita, avaliação que hoje é um clichê, mas em meados do século passado era bastante temerária.

ANTONIO CANDIDO COMEÇOU A FAZER CRÍTICAS EM JORNAIS
EM 1943 E LEVOU DEZ ANOS PARA ESCREVER A SUA OBRA
MAIS IMPORTANTE, "FORMAÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA"

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PREMIAÇÕES
O crítico recebe o Jabuti em 1966. Foi premiado também com o Camões

Com sua memória prodigiosa (ainda sabe o tamanho dos textos que escrevia semanalmente: cinco a seis laudas datilografadas, com 70 toques e 30 linhas), Antonio Candido lembra que, ao receber o livro de Clarice Lispector, julgou ter nas mãos um trabalho enviado sob pseudônimo. Na época, a resenha era, para ele, um trabalho de alto risco por estar voltada à revelação de novos talentos – e muitos deles eram totalmente desconhecidos, caso de João Guimarães Rosa, de quem também soube reconhecer de imediato o valor. Hoje, segundo Antonio Candido, acontece o contrário: a crítica se enredou na universidade e se dedica a estudar nomes consagrados. Como há 30 anos não acompanha a produção nacional – certamente para se eximir de tantas solicitações – ele se considera um homem do passado. Nos bastidores, contudo, comenta-se que, por ser tão próximo da família Buarque de Holanda, quis conhecer os primeiros romances de Chico Buarque e gostou do que leu.

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JUVENTUDE
Antonio Candido e sua mulher, Gilda, em 1943: com ela e alguns amigos, criou anos antes a revista “Clima”

Há alguns anos, indagado sobre co­mo se deu o seu en­contro com a literatura, Antonio Can­dido disse que tinha nascido com ela. Seu pai, um médico descendente de barões do Império, queria que ele seguisse sua carreira, o que o filho hoje acha até natural. Naquela época, quem cursava universidade optava por ser engenheiro, advogado ou, claro, médico. Ao fazer a prova de inglês, Antonio Candido foi reprovado. E se sentiu aliviado. Ele entrou para a Faculdade de Filosofia da USP e, a pedido do pai, cursou ao mesmo tempo direito. No primeiro curso, especializou-se em ciên­cias sociais e publicou sua clássica tese sobre o universo caipira paulista, “Os Parceiros do Rio Bonito”. Nesse período, nutriu-se do melhor conhecimento ao ter como professores a chamada “missão estrangeira”, europeus que vieram para o Brasil e ministravam cursos no idioma de origem, caso de Roger Bastide, Paul Ar­bousse-Bastide, Paul Hugon, Jean Maugué, Pierre Monbeig e Luigi Galvani. Essa erudição seria compartilhada mais tarde na atividade diária de professor, em aulas “inenarráveis”, conforme a discípula e professora de literatura Walnice Nogueira Galvão. Casado com a filósofa, crítica literária e professora Gilda de Mello e Souza, falecida há seis anos, Antonio Candido estendeu seu brilho também à família: suas filhas Laura e Marina de Mello e Souza destacam-se como historiadoras e Ana Luisa Escorel, como designer e editora de livros, sendo responsável pela reedição da portentosa obra do pai.