A médica Zilda Arns, coordenadora da Pastoralda Criança, leva ao projeto Fome Zero a sabedoriade quem vive há 20 anos no meio da pobreza

Tudo o que a médica sanitarista e religiosa Zilda Arns faz há 20 anos é trabalhar para que o filho do brasileiro pobre, não raramente miserável, tenha comida, escola, cresça com saúde e adquira condições para romper a barreira da exclusão, puxando, junto, a família. Viúva, mãe de cinco filhos, avó de oito netos, irmã de personalidades preciosas na vida religiosa, como dom Paulo Evaristo Arns e dom Crisóstomo, ela é a coordenadora da Pastoral da Criança, entidade da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que se dedica a crianças e adolescentes carentes do País. Por duas vezes seu trabalho foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz. No final do ano passado, Zilda Arns recebeu em Washington, Estados Unidos, o título de Heroína da Saúde Pública das Américas, homenagem feita pela Organização Pan-Americana de Saúde, braço da Organização Mundial da Saúde (OMS) na América Latina, onde a Pastoral tem ampliado sua atuação em países como Venezuela, Peru, Bolívia, Uruguai, Chile e, mais fortemente, no Paraguai. Na última semana, a organização e seus voluntários foram indicados como um dos finalistas do “Nobel das Crianças”, premiação criada por uma entidade internacional com sede na Suécia.

No Brasil, a Pastoral da Criança acompanha 1,6 milhão de crianças na faixa de zero a seis anos e quase 80 mil gestantes em mais de 32 mil comunidades, dando orientações básicas sobre saúde, nutrição, educação e cidadania. O resultado disso é que em 2001 a mortalidade infantil entre as crianças assistidas pela organização foi de 13 para mil nascidas vivas. A média do IBGE, no mesmo ano, foi de 29 para mil nascidas vivas. A sabedoria e experiência fazem de Zilda Arns uma das mais capacitadas integrantes da equipe que discute a implantação do Fome Zero, plano que pretende acabar com o problema mais urgente no País: a fome de pelo menos 25 milhões de pessoas (há estatísticas que falam em 50 milhões). Por isso, quando ela comenta alguns pontos frágeis do programa – como prestação de contas por parte dos beneficiados e imposição para que as famílias comprem apenas produtos que componham a cesta básica –, tem obrigatoriamente que ser ouvida. Para Zilda Arns, restri-ções não vão garantir o sucesso do Fome Zero. “Não critico o programa, sou colaboradora e sinto o dever de consciência de mani-festar o que eu acho”, disse ela nesta entrevista a ISTOÉ. “Eu acho que a gente não deve complicar, deve ser mais direto. Não é, portanto, dar o dinheiro e achar que a coisa está pronta. Fome Zero não prevê somente isso.” O lema da Pastoral da Criança foi retirado da Biblía. Está em João, 10,10: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância.’’ Zilda Arns o segue ao pé da letra para impedir a morte precoce e promover a qualidade de vida.

ISTOÉ – Qual é a participação da Pastoral no Fome Zero?
Zilda Arns

 É uma participação grande porque nesses mil municípios nós já temos núcleos em 67% deles. Isso não quer dizer que atendemos 67% das pessoas da população de cada município. Em alguns, estamos começando, temos que avançar. Mas já estamos presentes nesses municípios e não será difícil alcançar 100%. Nossa participação será exatamente nas áreas em que atuamos. Por exemplo, na área da saúde nós entramos com educação de gestantes, das mães, aleitamento materno, pesamos as crianças a cada mês, recuperamos milhares de desnutridos a cada ano. E também educação para a cidadania, para a fé e para a incorporação de informações. É muito importante para a inclusão social que haja apoderamento de informações na comunidade. Nós também alfabetizamos. Neste momento estamos com mais de 40 mil jovens e adultos na alfabetização.

ISTOÉ – A sra. acha que R$ 50 são suficientes para uma família?
Zilda Arns

É pouco. Por isso eu digo que o trabalho tem que ser
intersetorial. Ele prevê educação, saneamento, escola, saúde,
educação para o trabalho. E eu diria muito mais: tem que entrar
com muita esperança e acompanhamento dessas famílias. Não
largá-las com os R$ 50. Elas têm que ser acompanhadas, perceber
que todo mundo está querendo incluí-las.

ISTOÉ – O que a sra. pensa sobre a determinação de que se compre o que o governo manda?
Zilda Arns

O importante não é o dinheiro, é o resultado, que a família melhore a sua nutrição, que tenha mais alimentos na mesa. Mas para isso tem-se que visitar essas famílias. Não é com notas fiscais que se acompanha um projeto desses. A Pastoral da Criança visita as famílias todos os meses, sabe seus nomes. Essa avaliação é que é importante. Os R$ 50 talvez não dêem, mas quem sabe a família possa fazer mais alguma coisa. Vamos educá-los para o trabalho. Sobre a lista de compras eu só sei o que saiu nos jornais. Insisto que o que se deve fazer é educação. Na Pastoral, a gente ensina que arroz e feijão são uma ótima comida e eu duvido que uma mãe que receba os R$ 50 não procure em primeiro lugar comprar o arroz e o feijão.

ISTOÉ – Exigir nota fiscal parece idéia de quem nunca pisou numa região pobre…
Zilda Arns

Não se pode imaginar isso e a Pastoral tem provas. Acho que
a gente deve evitar toda a burocracia, confiar nos pobres, que são
muito mais honestos do que muitos pensam. Gastar funcionários para emitir notas fiscais é um desperdício. O voluntário, com quem trabalho a minha vida inteira, não gosta de burocracia. Ele gosta de ajudar as pessoas, cuidar das crianças. Mas a prestação de contas parece alguma coisa na linha “você desconfia de mim?” Se não for com voluntários, tem que ser feito com funcionários, mas quem garante
que esses funcionários não façam corrupção? Ele pode comprar uma coisa e pôr outra na nota, não pode? Isso, em nível nacional, não vai pegar não, e se pegar vai durar pouco tempo. É a inclusão social que deve ser acompanhada com muito carinho.

ISTOÉ – A sra. acha que há muita burocracia na discussão desse projeto?
Zilda Arns

Para dizer bem francamente, como tenho feito em todas as minhas declarações, de um governo novo não se pode querer que tudo esteja pronto no primeiro mês. É evidente que não é possível. Para a próxima reunião do Conselho de Segurança Alimentar (Consea), que será no dia 25 de fevereiro, eu pedi que fosse incluído uma pequena apresentação sobre os programas bolsa-alimentação, bolsa-escola e de erradicação do trabalho infantil. Visitei recentemente a bolsa-alimentação e verifiquei que pouco mais de um terço dessas pessoas miseráveis e pobres está incluído nesse programa. É preciso ter mais do que o dobro de recursos para atender com bolsa-alimentação essas famílias.

ISTOÉ – Os jornais reproduziram algumas críticas que a sra. teria feito a alguns pontos do Fome Zero. Foi crítica mesmo?
Zilda Arns

Eu não critico o programa, sou colaboradora e sinto o dever de consciência de manifestar o que eu acho. É um programa tão importante que não só a Pastoral, mas toda a Igreja, toda a população têm o dever de ajudar. Eu devo ajudar e quero que os resultados sejam alcançados. É um projeto novo. Eu sempre digo que um governo novo leva seis meses para estar com os pés no chão porque ele vem com muita pressão dos eleitores, precisa ver o que existe, os recursos que tem para então começar. Algumas coisas desde logo podem ser ampliadas e ir ao encontro do Fome Zero, São programas que já existem, mas devem ser ampliados, como a bolsa-alimentação. Isso poderia ser feito logo.

ISTOÉ – Como é a distribuição da bolsa alimentação?
Zilda Arns

São R$ 15 por criança de seis meses a seis anos ou por
gestante ou por nutriz. Esse dinheiro vai diretamente para a mãe
e ela gasta no que achar necessário. Mas existe um controle da contraparte. As crianças precisam ser pesadas todos os meses,
por exemplo. A avaliação, a meu ver, não deve ser pelo dinheiro,
mas, sim, pelos objetivos, que melhore a nutrição, que as mães
sejam mais educadas, que melhore o bem-estar na área da saúde.
Nós temos para isso 22 indicadores que são encaminhados para a Pastoral a cada mês e de três em três meses nós fazemos avaliação.

ISTOÉ – A fome, no Brasil, não vai além da comida?
Zilda Arns

Criança desnutrida não é só desnutrida por falta de comida, mas também por falta de conhecimento da família e falta de motivação. Muitas vezes ela não vacina a criança, a criança pega sarampo e não come, tem diarréia, a mãe troca amamentação por mamadeira, dá água contaminada. Então, o problema da desnutrição não é só pela falta de comida, que é muito grande. A motivação do povo não deve ser só alimentos e alimentos. O Brasil joga muita comida fora. No Paraná, o Ceasa faz um enlatado e um sopão com as sobras e distribui. Essa e tantas outras iniciativas ótimas devem continuar e ser implementadas. O olho da administração deve ser para a inclusão social, que também é um projeto do Fome Zero que tem de aterrissar. Existem muitas iniciativas de promover ação de renda na população, alfabetização. Música, arte, esporte não são só para lazer. Isso disciplina a criança, impõe limites de uma forma agradável, o que tem um significado profundo na formação das crianças e dos jovens. Eu também diria que a agricultura familiar no Brasil pode contribuir muito, inclusive nas áreas indígenas, que não querem ganhar comida, mas desenvolver a agricultura familiar para a sobrevivência. Os índios pedem até que sejam treinados como técnicos. A pessoa, no íntimo do seu coração, deseja a auto-sustentação.

ISTOÉ – O analfabetismo agrava a desnutrição?
Zilda Arns

A falta de alfabetização das mães é apontada como uma
das principais causas da desnutrição infantil em uma pesquisa que fizemos no ano passado, “Saúde e Nutrição Infantil em Áreas Pobres
do Norte e Nordeste do Brasil”, abrangendo 1.528 crianças de zero
a cinco anos de idade em três mil domicílios de 18 áreas rurais e
urbanas muito pobres… Combater o analfabetismo da mãe é,
muitas vezes, salvar a vida de uma criança.

ISTOÉ – A mulher, no seu entender, seria o principal agente de transformação da família?
Zilda Arns

Sempre as mulheres. A mulher – isso tem comprovação até em pesquisas, sem contar nossa experiência de 20 anos da Pastoral – é o principal agente de transformação da família e da comunidade. Recebendo o dinheiro, ela sabe do que mais a família precisa, sabe
que o alimento é a coisa mais importante nas mesas das pessoas
pobres e miseráveis. Ela não vai comprar outra coisa se não tem alimentos, isso não entra na cabeça da mulher. Ao mesmo tempo,
se fosse possível fazer no fundo da casa uma horta, ela pegaria os
R$ 50 reais para comprar uma pá, uma enxada para plantar verduras
e hortaliças, se a prefeitura ajudasse com sementeiras. A mulher promove a cidadania, é a dona do dinheiro. Ela é uma agente de transformação extraordinária. Ah, se não fossem as mulheres… Se a mulher aprende a ler e escrever, ela não deixa os filhos analfabetos de jeito nenhum. A mulher sempre quer que o filho seja mais do que ela.

ISTOÉ – A sra. está otimista?
Zilda Arns

Estou. Por natureza eu sou otimista e diria que o País nunca foi tão mobilizado para colaborar. Agora nós temos que andar rápido para organizar bem. Como administradora laureada três vezes com título internacional pela Organização Pan-Americana de Saúde, eu diria que administrador é aquele que olha o que tem, procura melhorar o que já existe e cruzar as coisas porque nenhum setor é suficiente por si próprio para o alcance do objetivo. Esse diálogo com outros setores, a convivência fraterna, a colaboração farão com que o programa tenha sucesso. Estou esperançosa e creio que todo o povo brasileiro deve colaborar. Diria que se deve priorizar aquilo que já está aí, funcionando; depois, observar as várias experiências simples, baratas e aplicáveis em larga escala que deram certo. Há muitas no Brasil. Eu acho que a gente não deve complicar, deve ser mais direto. Não é, portanto, dar o dinheiro e achar que a coisa está pronta. Fome Zero não prevê somente isso.