O e-mail enviado por Lucilane Souza, 42 anos, moradora da Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo, um dos lugares mais violentos e abandonados do mundo, deixou Thiago Guimarães com um nó na garganta:
– tahopssoquedusiluminesuscamhno
paravocepudeajudaaspsoas.

Semi-analfabeta, desempregada, periférica, Lucilane é um dos milhões de excluídos pela ineficiência crônica do sistema educacional brasileiro. Mesmo assim, encontra disposição para fugir de um novo tipo de ignorância: o analfabetismo digital. As 54 letras da mensagem, digitadas sem espaços, são fruto de um esforço comovente para homenagear Guimarães, o instrutor do curso básico que introduziu Lucilane no universo dos computadores e da internet num telecentro de seu bairro. A tradução: Thiago, que Deus ilumine seu caminho para você poder ajudar as pessoas. “Fui escrevendo e apagando, até que ficou bonitinho e eu mandei”, conta ela. “Percebi as dificuldades dela, mas não notei que ela não era alfabetizada”, completa Thiago, emocionado.

O caminho dos milhões de Lucilanes deste país rumo à inclusão digital está apenas no início. Mesmo assim, ISTOÉ acumulou vários exemplos de pessoas que lutam com a mesma valentia para fugir do analfabetismo na era da informática. Se não for combatida com seriedade, essa segunda onda de ignorância terá efeitos tão cruéis quanto os da primeira onda da educação formal. E o melhor é não deixar ao vento a navegação dos periféricos. Eles poderão ser condenados à incapacidade de promover qualquer mudança positiva em suas trajetórias. Para se ter uma idéia, a humanidade entrou no século XX conhecendo a luz elétrica e a telefonia. E, mais de 100 anos depois, estudos como o do economista americano Jeremy Rifkin, feito para a Organização Internacional das Telecomunicações, chegaram a dados espantosos. Quatro em cada dez habitantes da Terra vivem sem energia. Sessenta e cinco por cento deles jamais disseram um alô ao telefone. Apenas um distrito de Nova York, a ilha de Manhattan, possui mais linhas telefônicas do que toda a África. Outros dados impressionantes sugerem a rota do abismo. Os 24 países mais ricos do mundo possuem apenas 15% da população do planeta, mas concentram 71% das linhas telefônicas e 88% dos usuários da internet. Os Estados Unidos são os responsáveis por 41% de todo o acesso mundial. A Ásia, a região mais populosa, controla apenas 20% e a América Latina, 4%. No Brasil, apenas 300 dos mais de cinco mil municípios possuem estrutura mínima para a instalação de serviços locais de acesso à rede mundial de computadores.

Apesar das dificuldades, a escalada digital chega com a promessa de uma revolução ainda mais profunda do que a produzida por todos os avanços tecnológicos dos últimos 200 anos. Essa revolução não trará apenas conforto e qualidade de vida. Ela também modificará a capacidade cognitiva do ser humano, suas habilidades para aprender, ensinar, raciocinar e exercer a criatividade. Por isso, muitos se esforçam para incluir o maior número possível de pessoas neste bonde virtual. No dia 23 de março, liderados pela ONG Comitê para a Democratização da Informática (CDI), acontece, pela segunda vez, o dia de mobilização nacional contra a exclusão. “É preciso combater o apartheid digital”, diz Ricardo Baggio, o idealizador do CDI. No ano passado, a maratona incluiu a participação da atriz Fernanda Montenegro, num encontro na Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Agora, os organizadores prometem manifestações de Norte a Sul do País e uma grande festa nas barcas da travessia Rio–Niterói, na Baía da Guanabara. Um dos motes da campanha será “Navegar é preciso, internet para todos.”

“A alfabetização digital, principal caminho para a inclusão, deve ser tratada como política pública”, defende o sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira, professor da Faculdade de Comunicação Social Cásper Libero. Uma pessoa alfabetizada no universo digital deve ter condições de selecionar informações na web, processar os dados, adquirir conhecimento e transmitir esses dados. “A grande maioria dos filhos de classe média dos dez aos 14 anos é capaz de realizar essas tarefas. O poder público deve montar telecentros, treinar instrutores e equipar escolas para que as populações carentes cheguem neste nível”, esclarece o sociólogo.

Espaço livre

O sociólogo e professor Sérgio Amadeu da Silveira lançou recentemente o livro Exclusão digital – a miséria na era da informação. Nesta entrevista, ele aponta caminhos para a democratização do acesso à internet.

ISTOÉ – O que está errado na rede?
Sérgio Amadeu da Silveira –
Muitos teóricos imaginavam que a internet, sozinha, geraria distribuição de renda e diminuiria o abismo social. Os dados mostram que a rede ajudou a concentrar renda. Se não atacarmos a elitização do acesso enquanto é tempo, a internet se consolidará como o mais fascinante e charmoso instrumento de concentração de renda da modernidade.

ISTOÉ – Como o sr. define a exclusão digital?
Silveira –
O excluído é privado de três instrumentos básicos: o computador, o condutor – linhas telefônicas ou bandas de transmissão – e o provedor de acesso. O resultado disso é o analfabetismo digital, a pobreza, a lentidão, o isolamento e o impedimento do exercício da inteligência coletiva. Isso já pode ser comparado, sem exageros, aos estragos que a fome provoca nos primeiros anos de vida de uma criança.

ISTOÉ – E qual é a solução?
Silveira –
Educação digital, telecentros gratuitos, financiamento de computadores e uso maciço de softwares livres em universidades, escolas e instituições públicas. A internet só será livre se a maioria dos programas aplicativos usados para acessá-la também for livre.

Coordenador do Governo Eletrônico da Prefeitura de São Paulo, Amadeu da Silveira comanda um dos mais ambiciosos projetos de inclusão digital em andamento no País. Nos últimos nove meses, implantou dez telecentros comunitários em algumas das regiões mais pobres e violentas da cidade. Em bairros como a Cohab Cidade Tiradentes, Cidade Líder, Sapopemba e Vila Curuçá, sua equipe já abriu dez telecentros, cada um com 20 computadores conectados à internet por banda larga. Outros 13 estão sendo instalados. Até o fim de 2004, pretende espalhar pelo menos 400 pontos semelhantes pela cidade.

Site cerebral – A implantação de alguns desses telecentros exigiu habilidades extras. No da Cidade Tiradentes, o primeiro do projeto, a sala só pôde ser aberta depois de uma conversa providencial com a mulher do traficante que domina a área. Em novembro passado, o dono do pedaço foi preso. Investidas diplomáticas foram feitas para acalmar um grupo rival que ameaçava tomar o poder e roubar os computadores. A Vila Brasilândia, bairro com o maior índice de assassinatos per capita do mundo, abriga o mais bonito e bem equipado telecentro desta primeira leva. Um dos destaques é uma bela onda amarela numa das paredes, pintada por um dos líderes do tráfico local.

O esforço acaba sendo recompensados por episódios interessantes. Um deles foi o lançamento do rap Interface virtual. Criado por Franilson Batista, o Guru, e Gildean Pereira, o Paniquinho, do grupo Fator Ético, da Cidade Tiradentes, a composição virou uma espécie de hino informal do projeto. “A ética do ser humano vive a desejar/No mundo real você merece outra revanche/Zona leste, Brasil, Cidade Tiradentes/Aproveite a mensagem e digite novamente/Segure o mouse, click/Digite as teclas, bug/Acesse o site cerebral/Insanidade virtual”, diz um trecho da letra, imensa como sempre.

O projeto também deu nova disposição à enfermeira aposentada Natalina Cabral, 71 anos. Ela conheceu a internet há dois meses, enquanto se recuperava de problemas circulatórios, numa cadeira de rodas. “Gosto de ler jornais e pesquisar receitas de comida. Eu achava que iria morrer sem tocar em um computador”, diz ela, enquanto navega com a neta Silvana no colo. A cozinheira Angélica de Almeida tem a mesma idade e disposição de Natalina. Moradora de Taboão da Serra, durante quatro meses, no ano passado, ela estudou na cidade vizinha de Osasco (SP). Concluiu o curso, mas resolveu repeti-lo. “Quero praticar muito. Minha idéia é virar instrutora”, revela.

No Brasil, 17 milhões de pessoas têm contato com o computador e 13 milhões, cerca de 8% da população, acessam a internet, incluindo aqueles que navegam uma ou duas vezes por mês. Oito em cada dez internautas pertencem às classes A e B. Numa lista de 72 países, divulgada pela Organização das Nações Unidas (ONU), no final do ano passado, o País está em 43º lugar. Ganha da África, mas perde para Trinidad-Tobago e Panamá. Há um longo caminho pela frente, mas alguns projetos espalhados pelo País começam a mudar a situação. O CDI está entre os pioneiros. Criado no Rio em 1995, controla hoje 379 escolas de informática e cidadania em comunidades carentes de 19 Estados. Além disso, possui franquias sociais não-lucrativas no México, Colômbia, Chile, Japão e Uruguai.

Mais de 170 mil pessoas passaram pelos cursos do CDI. Algumas mudaram seu percurso como consequência direta da experiência. É o caso de Altamiro Serra, 36 anos, que carregava uma condenação por sequestro e poucas perspectivas de futuro. Na Penitenciária Lemos de Brito, no Rio, onde passou sete anos e sete meses, fez os cursos que o CDI implantou para os detentos a partir de 1997. “Acabei virando instrutor. Quando saí, só não conhecia internet porque é vetado na penitenciária”, conta Serra, em liberdade condicional há um ano e quatro meses. Desde que deixou a prisão, ele ganha a vida como instrutor de informática. Atualmente, tem 200 alunos no complexo do Estádio do Maracanã, com apoio do CDI. “Educar ajuda a combater a violência”, diz Serra. “Todo cidadão precisa ter um trabalho digno.”

Aldeia na tela – Os rumos de Antônia Freitas, 30 anos, também foram modificados. Moradora de Caucaia, na região metropolitana de Fortaleza, mãe de dois filhos, ela estava desempregada há mais de três anos. “Sempre me perguntavam se eu sabia mexer com computador”, lembra. Decidiu então fazer um curso de informática no Lar Fabiano de Cristo. Dias depois, começou a trabalhar na indústria de cosméticos Cigel. “Estou feliz da vida”, diz.

O guarda-chuva do CDI abriga até uma tribo guarani com 360 índios, a 25 quilômetros de Angra dos Reis (RJ). Como a aldeia não tem luz elétrica, os três computadores ficam na casa da missionária Eunice da Silva, a dois quilômetros da aldeia, no pé da serra da Bocaína. “O espaço é pequeno, não tem telefone, mas enquanto a luz não chegar vamos tocando. Eles gostam de desenhar, mas percebem que precisam da ferramenta no contato com a sociedade”, relata Eunice. “Computador é uma forma de guardar a comunicação. É uma caixa de memória”, define Algemiro da Silva, que em guarani se chama Karaí-Mirim. Ele planeja usar a máquina para perpetuar a história de seu povo. O mapa da aldeia já está devidamente registrado.

O ânimo exibido pelos índios parece ser a marca dos envolvidos nesses projetos. Em Osasco, na Grande São Paulo, a dura rotina de trabalho dos garis não impediu a criação de um dos mais originais projetos de inclusão social do País, o Informática para Todos. Organizado pelo sindicato da categoria, o curso, com uma aula semanal, dura quatro meses e é gratuito para os trabalhadores e seus familiares. Quando têm recursos, as pessoas da comunidade pagam/R$ 30 por todo o programa. Nos últimos dois anos, mais de 3.500 pessoas tiraram o diploma.

Funcionários de uma empresa que presta serviços de limpeza urbana, Francisco da Silva, 24 anos, e Laurindo dos Santos, 22, correm em média 40 quilômetros por dia para recolher lixo. Mesmo assim, arrumaram energia para estudar informática no Jardim Piratininga, que abriga um dos seis núcleos de informática do sindicato dos garis. Eles também pretendem retomar a educação formal, que interromperam na quarta série. “Temos de investir enquanto é tempo”, diz Silva, que já descobriu suas preferências. “Gosto de imprimir, principalmente poemas”, assume. Laurindo já tinha contato com informática, por causa de um cunhado que tem computador. “Passo horas nos jogos de estratégia e de corrida de carro”, comenta.

O incentivo à inclusão não se limita a esses grupos. Projetos como o Farol do Saber, em Curitiba, o Viva Favela, do Rio, e o Sampa.org inspiram similares em todas as regiões do País. Até o governo federal está se mexendo, pois mobilizou R$ 3 bilhões para combater as desigualdades na área. A principal iniciativa foi a aprovação do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), abastecido por 1% do faturamento das empresas do setor. O fundo arrecadou mais de R$ 1 bilhão em 2001 e pretende distribuir 290 mil computadores para 13 mil escolas de ensino médio profissionalizante, beneficiando sete milhões de alunos.

Todos esses projetos indicam que está prestes a ocorrer uma explosão nacional de demanda por equipamentos e serviços de informática. Um reflexo dessa tendência é o desempenho da Metron, uma empresa nacional fundada em 1984 que, no ano passado, vendeu 178 mil máquinas – entre elas oito mil “computadores do milhão” em parceria com o apresentador Silvio Santos – e desbancou a gigante Compaq da liderança de vendas no varejo. O segredo do sucesso foi o financiamento em até 36 meses. “Os pais das classes C e D compram para os filhos na esperança de que eles tenham mais oportunidades no mercado de trabalho”, explica o dono, Leone Picciotto. No fundo, o que esses pais estão fazendo, por amor, é um negócio chamado inclusão digital.