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CHUMBO GROSSO
A ação da polícia durante a greve dos estudantes no Rio,
em 1964, foi um dos marcos do início do período ditatorial

Durante décadas, os parentes de pessoas assassinadas nos porões da ditadura mi­litar alimentaram a es­perança de desvendar o destino de seus familiares. Com a criação da Comissão da Verdade pelo Senado na quarta-feira 26, eles ganharam, enfim, a oportunidade de esclarecer o que de fato aconteceu nos anos de chumbo. Saberão em detalhes como funcionava a “máquina de matar” montada pela repressão. Os sete integrantes da Comissão terão poderes para levantar informações sobre mortes, torturas, desaparecimentos e ter acesso a documentos públicos e privados. Está prevista a convocação de militares, civis e ex-guerrilheiros. A Comissão, contudo, não terá poder jurisdicional. Ou seja, não vai punir os responsáveis identificados nos relatos, a exemplo do que ocorreu na África do Sul. Mas as Forças Armadas estão obrigadas a abrir seus arquivos, se é que ainda existem. “Esse projeto mostra o compromisso com a busca da verdade, particularmente naquele período triste da história”, afirma o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo.

Embora não se conteste a im­portância da Comissão, há críticas ao prazo de apenas dois anos para investigar o período ditatorial e à reduzida equipe de sete executivos. O fato de a Comissão não ter poder punitivo também deixa um travo de impunidade. A ministra da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Maria do Rosário, porém, discorda da avaliação pessimista. Para ela, as apurações do órgão podem instruir posteriores ações condenatórias. “A Comissão é apenas o início, abre o caminho da Justiça. Na Argentina, os resultados foram levados ao Judiciário, que julgou e condenou. No nosso caso, também caberá às famílias pedirem as condenações”, afirma ela. Essa também é a visão do relator do projeto no Senado, o tucano Aloysio Nunes Ferreira (SP), ex-guerrilheiro da Aliança Libertadora Nacional (ALN) e braço direito de Carlos Marighella. “Não se admite na democracia um tribunal de exceção. Essa função é do Poder Judiciário. As informações levantadas po­dem até ser enviadas à Justiça para os que se sentirem atingidos”, explica o senador.

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DIREITO
Aloysio Nunes diz que famílias podem pedir indenizações

A investigação cobrirá crimes cometidos de 1946 até 1988, ano em que foi promulgada a atual Constituição. Mas o foco principal, sem dúvida, será o período da ditadura, especialmente após a edição do AI-5 em 13 de dezembro de 1968, quando foi tomada a decisão de esmagar os militantes da esquerda. A tortura, então, tornou-se sistemática. Mas a anistia de 1979, ampla, geral e irrestrita, estendeu o perdão judicial aos crimes contra a vida. Por isso, será difícil assistir no Brasil à punição nos moldes da Argentina e do Chile, países que mandaram os generais para a prisão. O exemplo mais recente ocorreu na semana passada, quando a Justiça argentina condenou à prisão perpétua o ex-militar Alfredo Astiz, torturador conhecido como o “anjo louro da morte”. No Uruguai, a Câmara dos Deputados caminha para ratificar o projeto, aprovado pelo Senado, que anula a prescrição dos crimes da ditadura militar. Chilenos, argentinos e uruguaios entendem que a tortura é um crime contra a humanidade. Sem direito a perdão.

"As condenações poderão vir pelo judiciário"

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Ao contrário do que apregoam os líderes partidários, a Comissão poderá chegar sim às punições. É o que garante a ministra da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Maria do Rosário, em entrevista à ISTOÉ.

ISTOÉ – A sra. está otimista com a Comissão da Verdade? Há críticas ao prazo de dois anos e ao fato de serem apenas sete integrantes.
Maria do Rosário – Estou muito otimista. Esse grupo terá uma retaguarda de apoio imensa. Considero que o mais importante para nós é começarmos esse trabalho. O prazo poderá ser prorrogado. Não podemos partir do pressuposto de que a Comissão não vai conseguir cumprir sua tarefa. Nas discussões, não nos preocupa o prazo ou o número de integrantes. Nenhum aspecto é mais importante do que os poderes que a Comissão terá. Será a primeira vez que uma comissão vai buscar informações onde quer que elas estejam.

ISTOÉ – Mas como o governo vê as críticas à falta de poder punitivo da Comissão?
Maria do Rosário – Não poderíamos ter uma comissão com poderes criminais, porque isso seria um tribunal de exceção. Com base na experiência da Argentina, percebemos que lá os resultados da Comissão da Verdade foram levados ao Judiciário. Aqui, as condenações poderão vir pelo Judiciário. As pessoas que lutam por condenações penais têm todo o direito de buscar as punições na Justiça. Sempre haverá por parte das famílias o direito de buscar as reparações.

ISTOÉ – Sua secretaria enviou ao Congresso um projeto para coibir a prática de tortura no País. A sra. acredita na eficácia desse mecanismo?
Maria do Rosário – Nosso projeto cria o Sistema Nacional de Combate à Tortura, principalmente em presídios, manicômios, casas de longa permanência para idosos e sistemas educativos de adolescentes. Essas instituições serão acompanhadas por controle externo. O sistema nacional terá um comitê e um mecanismo de peritos independentes, que vão poder entrar nessas instituições sem aviso prévio. É o melhor mecanismo e o que mais atende às normativas das Nações Unidas contra tortura.