Powell não é Stevenson. Em 1962, o então representante americano junto à Organização das Nações Unidas, embaixador Adlai E. Stevenson, usou uma reunião de emergência do Conselho de Segurança para convencer o mundo de que era preciso interromper a expansão nuclear de um regime tirânico. Ele usou fotos de satélite revelando a montagem, sob a tutela da União Soviética, de plataformas de lançamento de mísseis em Cuba. Com estas provas, evitou uma guerra. O secretário de Estado, Colin Powell, foi, na quarta-feira, 5, ao mesmo salão da ONU mostrar o seu arquivo de fotos. Queria demonstrar que o Iraque estava mais uma vez ganhando no jogo de gato e rato, com o qual esconde seu arsenal de armas de destruição em massa. Na bagagem, o secretário também trouxe gravações onde supostos militares iraquianos combinam estratégias de escamoteamento de material comprometedor e tentou mostrar ligações de Bagdá com a al- Qaeda. Procurou arrancar dos membros do Conselho uma resolução pela declaração de guerra ao regime de Saddam Hussein. Seus esforços, porém, não converteram seus opositores.

As fotos que Stevenson mostrou num painel de madeira suspenso por um cavalete não tinham nem 50% da boa definição das imagens trazidas por Powell. O secretário de Estado atual ainda contou com um telão sofisticado, montado especialmente – e pela primeira vez na sala do Conselho de Segurança – para sua exposição de motivos. No entanto, o primeiro deixou a reunião vencedor, enquanto o segundo saiu no máximo com um empate técnico. Bagdá mandou um assecla, o tenente-general Amir al-Saadi qualificar o esforço como “típico dos americanos”, com muita “pirotecnia”, e fruto de “efeitos especiais”.

Tática e estratégia – De todo modo, quem era contra uma invasão
do Iraque antes da exposição de Powell continuou apelando pela paz.
Os motivos para essa discrepância entre o velho e o novo representante americano vêm do fato de que Stevenson era um embaixador de primeira linha, enquanto Powell é apenas um general simpático. “Durante a chamada ‘Crise dos Mísseis’, Stevenson participou de um esgrima diplomático inteligente e altamente elaborado. Ele deu a corda para
que Valerian Zorin, o representante russo, se enforcasse. As fotos
de satélite não serviam por si para demonstrar claramente aos olhos leigos a instalação das plataformas de mísseis. Mas complementaram a estratégia de debate dos EUA”, diz o historiador Arthur Schlesinger Jr., que viveu ativamente aquele momento de 1962, quando foi assistente especial do presidente John F. Kennedy. Ou seja: as fotos de satélite foram apenas o coup de maître de uma tática. Já para Powell, as imagens foram a própria estratégia.

Menos de uma hora depois de Powell terminar sua exposição, o
ministro das Relações Exteriores da França, Dominique de Villepin, disse
ao mesmo Conselho que seu país não exclui a possibilidade do uso de
força, mas que este deve ser o último recurso, e que acredita que a continuidade das inspeções no Iraque ainda pode dar bons resultados.
Seu colega alemão, Joschka Fischer, fez um discurso acalorado contra
a guerra. Rússia e China – que juntamente com a França têm poder de
veto no mesmo corpo consultivo – manifestaram sua preferência pela extensão de monitoramentos.

Entenda-se: nos corredores da ONU, poucos duvidavam das provas apresentadas por Colin Powell, mas o argumento contra a guerra não se baseava na existência de arsenal perigoso no reino de Saddam. “A questão não é se o Iraque tem ou não armas de destruição em massa ou se o país está sendo plenamente cooperativo com os inspetores. Acho que todos concordam com essas premissas. As divergências estão centradas no timing do ataque. Por que é tão urgente atacar o Iraque? Será que Saddam Hussein é mais ameaçador hoje do que era há, digamos, três anos? Existem outros regimes que têm arsenais até maiores e mais ameaçadores do que o iraquiano. Por que não atacar a Coréia do Norte, por exemplo?”, disse o diplomata alemão Reinhard Böhm na quarta-feira 5. No dia seguinte, a Coréia do Norte ameaçava “guerra total” caso fosse atacada pelos EUA. Tratava-se de uma clara resposta ao estado de alerta dos bombardeiros americanos ao sul do Paralelo 38º, acionado 24 horas antes pelo Departamento de Estado. A questão ficou no ar: quem é mais perigoso e merece mais atenção, Saddam Hussein ou Kim Jong Il?

“O que a França e a Alemanha estão contra, na verdade, é o
flexionar de músculos dos EUA. Imaginam que são a última linha de
defesa contra o que acreditam ser um eventual domínio total dos americanos no mundo”, analisa Philip Gordon, especialista do Instituto Brookings. Ele também poderia mencionar que os franceses não vêm
com bons olhos o fato de os americanos estarem prontos para colocar
as mãos nas torneiras de petróleo do Iraque. E o investimento de Paris nesta área foi grande e penoso.

ONU acuada – Na exposição que fez ao Conselho de Segurança, o secretário Powell disse que o Iraque não havia aproveitado uma última chance dada por aquele organismo. Na verdade, a mensagem poderia ser dirigida também à própria ONU, que corre o risco de se tornar irrelevante, caso os EUA e seus poucos aliados decidam atacar Saddam Hussein unilateralmente. Há quem acredite que a ONU não pode correr este risco e deve aceitar a imposição de Washington para pelo menos salvar um pouco de sua honra. E um primeiro passo neste rumo foi dado na quarta-feira 5, quando o “bom tom” dos diplomatas da casa fez com que fosse encoberta por um pano azul uma tapeçaria, pendurada no corredor de acesso ao Conselho de Segurança. Ela reproduzia o quadro Guernica, de Pablo Picasso. Procurava-se, assim, esconder os horrores da guerra. Afinal, não ficaria bem se as câmeras de tevê mostrassem o secretário Powell pedindo luta encarniçada na frente de um cenário com mães chorosas, crianças mortas, cavalos enlouquecidos, bombas explodindo…