Na terça-feira 4, o ex-líder do PMDB Geddel Vieira Lima foi flagrado nos corredores do oitavo andar da sede da Polícia Federal em Brasília, onde fica o gabinete do diretor-geral, Paulo Lacerda. Geddel, nervoso, atropelou a agenda de Lacerda para relatar em pé, no corredor, que fora vítima de um grampo durante a eleição do ano passado e que a arapongagem acabou pegando o ex-presidente da República Fernando
Henrique Cardoso em comentários desalentados sobre a claudicante candidatura do tucano José Serra.

No dia seguinte, o deputado Geddel Vieira Lima voltou à PF. Desta
vez para prestar um depoimento formal indicando que seu arquiinimigo baiano, senador Antônio Carlos Magalhães (PFL), seria o mentor do grampo em seus telefones fixos e também no celular. Levava no bolso esquerdo do paletó cópias de um tiroteio via fax entre ele e o manda-chuva da Bahia, no qual, segundo Geddel, estão ameaças veladas de ACM contra ele. “Aguarde acontecimentos pós-eleição”, apontou o
trecho de uma das correspondências enviadas por seu maior rival. A suspeita do grampo se arrasta desde a eleição do ano passado, quando
o setor de Inteligência da PF na Bahia entrou em campo para apurar as denúncias do deputado de que estaria sendo monitorado. O inquérito da PF, aberto agora oficialmente com o depoimento de Geddel, acabou comprovando o uso do aparato policial do Estado para a gravação de conversas de parlamentares. Após o depoimento, o deputado Geddel deixou a sede da PF em Brasília com toda a documentação levantada pelas investigações da polícia até agora.

“A Polícia Federal já constatou, inclusive com provas, que o grampo foi realizado pela Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia”, revelou o diretor-geral da PF, delegado Paulo Lacerda, ao próprio Geddel, na quarta-feira 5. “E como o grampo foi executado no período eleitoral, deve ser investigado pela Polícia Federal”, completou Geddel. Um delegado da PF com acesso ao inquérito diz que já está identificado o “rapaz” que executou o grampo. O período de gravação abrange 95 dias, entre 19 de maio e 21 de agosto de 2002, quando corria solta a sucessão presidencial, já com os maus presságios da candidatura Serra perdendo terreno para Lula e Ciro Gomes.

Nem todos os dias registram grampos: as 126 gravações, realizadas ao longo de 36 dias, alternados, somam cerca de 200 horas de conversas que têm como centro Geddel Vieira Lima. Na época, líder do PMDB na Câmara e um dos membros destacados da cúpula que arrastou o partido para a candidatura de José Serra, Geddel tratava de questões pessoais e nacionais – discutindo problemas políticos e particulares com gente tão distinta como a mãe, dona Marluce, a candidata Rita Camata, o leão da Receita, Everardo Maciel, ministros e o próprio presidente FHC. Mais do que a ilegalidade, a arapongagem mostra o grau de ousadia e o nível de promiscuidade em que afundaram importantes gabinetes da República.

Na tarde da última quinta-feira 30, o Congresso vivia um dia agitado. Era véspera da eleição das mesas e a ala dissidente do PMDB, comandada pelo governador Roberto Requião (PR) e pelo ex-governador Orestes Quércia, apostava suas últimas fichas, sustentando a candidatura do senador Pedro Simon a líder do PMDB, na reunião que a bancada faria
no dia seguinte. Ao mesmo tempo, ISTOÉ tinha acesso a um calhamaço em espiral, de 170 páginas, sob o título “Relatório Confidencial”. Era o resumo das conversas telefônicas atribuídas a Geddel, em forma de relatório, com algumas anotações manuscritas por ACM. “Não tenho
nada a ver com isso”, diz o senador.

O grampo, confirmado pela PF, foi realizado pela polícia baiana na gestão do governador em exercício Otto Alencar, vice de César Borges, discípulo de ACM que se licenciou para conquistar uma das vagas de senador pela Bahia. Além de Geddel, pelo menos em duas oportunidades foi grampeado o telefone do deputado baiano Benito Gama, um ex-amigo de ACM que virou inimigo e, mesmo trocando a camiseta do PMDB pela do PTB, foi vetado há duas semanas pelo senador para a diretoria de Habitação da Caixa Econômica Federal.

As gravações de maio a agosto de 2002 aconteceram em horas diferentes do dia, às vezes concentradas num único dia. Em 12 de julho, por exemplo, o gravador foi acionado 13 vezes – a primeira às 9h24m22s, a última às 20h19m05s, conforme a precisa anotação do grampeador. No dia 8 de junho, a prova de que o araponga madrugava para executar seu ofício: a gravação começa às 5h01m54s, horário ideal para confidência entre mãe e filho. O registro diz que era Geddel ligando para a mãe, dona Marluce, para comentar uma denúncia do Correio da Bahia, jornal de ACM, contra ele e Benito. Ele se diz aliviado por não ter saído nada em O Globo: “Foi melhor não ter saído nacionalmente”, disse Geddel, segundo o grampo. O deputado comenta com a mãe que Benito pode perder a influência que tem na Receita Federal e, por isso, tem conversado com Everardo Maciel. “Eu quero que ele se foda”, desdenha Geddel de Benito.

A mãe, Marluce, também foi acionada no dia 23 de maio, uma quinta-feira, às 18h5032s. O tema é a investigação da Receita Federal sobre fazendas e imóveis da família, denunciada na imprensa. Dona Marluce reclama que estão “exagerando” nos pedidos de documentos (movimento diário de 1997 e mensal de 97 a 99). Geddel manda guardar cópia do pedido e diz que na terça-feira vai a FHC reclamar do “absurdo”. As contas são do antigo Bamerindus e dona Marluce acha que não vai conseguir a papelada no limite de dez dias. Geddel,
diz o resumo, se compromete a pedir um prazo maior a FHC.

No dia 27 de maio, às 9h18m35s, o xerife Everardo Maciel liga para Geddel, em Salvador, de onde embarcaria no dia seguinte para
Brasília. O tema é a investigação que a Receita Federal está fazendo sobre o “patrimônio dos Vieira Lima”, na classificação do relatório.
Seis minutos depois, Geddel liga para a mãe para avisar que Everardo ligou, “com muito carinho”. Combinam pegar o mesmo avião, naquele mesmo dia, para a reunião em Brasília com o leão da Receita. Às 14h35m02, Geddel avisa que Everardo voltou a ligar, marcando a
reunião para as 11h da manhã seguinte.

As agruras não eram privilégio dos Vieira Lima. A família Camata também passava momentos difíceis. No dia 25 de maio, às 18h08m14s, Geddel telefona para Michel Temer, presidente do PMDB. Gerson Camata
acabara de ligar, avisando que sua mulher, Rita, não seria mais candidata. Um jornal paulista tinha ligado perguntando se o senador era responsável pela morte do irmão num acidente de carro, dez anos atrás. “Isso não é vida, é uma putaria, não aguento mais a vida pública”, reclamou Gerson Camata. E pediu que sondassem o gaúcho Pedro Simon para o lugar de Rita na chapa de Serra. Geddel pediu calma ao senador. No dia 27 de maio, às 11h10m42s, quem liga é Rita, que se diz assustada com a pressão sobre o marido: “Eu sou a candidata, mas é ele quem
está sendo atacado.”À tarde, às 15h29m56s, é José Serra quem liga, para dizer que Gerson Camata estava “muito amargurado”, acuado
pelas especulações da imprensa sobre a mulher. Quatro dias antes,
23 de maio, numa conversa com a mãe, às 14h11m58s, Geddel ouve
o que todo mundo diz da escolha de Rita: “Não sei por que o Serra
não colocou o Pedro Simon de vice.” Geddel concorda e diz que Serra tinha que ter escolhido o catarinense Luís Henrique: “Tá querendo
colocar mulher bonita, que se foda.”

O próprio Serra, preocupado com a subida de Ciro Gomes nas pesquisas, liga em 10 de junho, às 17h00m54s. “Ele é um desequilibrado, mistura de Collor e ACM”, diz o tucano. Geddel aconselha Serra a explorar o apoio do PPS a Collor em Alagoas. No dia 15 de junho, às 9h55m22s,
Geddel liga para FHC, reclamando da desorganização da campanha
de Serra. “Tem que haver um comando mais político, mais ativo”, concorda o presidente. “Não vamos entregar a rapadura, assim.”
Geddel emenda: “E entregar para o que há de pior (Ciro). Nesse nível
eu prefiro o barbudo (Lula).” Geddel reclama de Serra: “Ele não pode chegar aos lugares de mau humor.” “Na teve, isso é decisivo”,
completa FHC. Geddel diz que está angustiado com os rumos da campanha. “Eu também”, confessa o presidente.

Geddel é um homem preocupado com os amigos baianos. Cláudio Melo liga no dia 23 de maio, às 12h31m43s, para reclamar da ameaça de cancelamento da concorrência do porto de Alcântara, no Maranhão, só porque a empreiteira Camargo Corrêa foi desclassificada. No relatório em poder de ISTOÉ, sobre o nome sublinhado de Melo, anotação de ACM indica sua origem funcional: Odebrecht. Oito minutos depois, às 12h39m50s, Geddel liga para Temer e este coloca na linha ninguém menos que o ministro dos Transportes, João Henrique, que promete analisar o caso. No dia 11 de julho, às 12h26m39s, Melo, da Odebrecht, volta a ligar, reclamando que o ministro não o recebe. No minuto seguinte, 12h27m00s, Geddel liga para o ministro, que se dispõe a receber o executivo da Odebrecht depois do expediente – às 21h. Os trechos do documentos vão esquentar o Congresso como fritura no dendê e muito parlamentar graúdo pode sair queimado.