Os barulhentos radicais do PT parecem ter feito voto de silêncio durante a campanha eleitoral. Não se ouviram protestos ao tom moderadíssimo do programa do então candidato a presidente de todos os petistas, Luiz Inácio Lula da Silva, nem à escolha do empresário e senador do PL José Alencar (MG) para ser o companheiro de chapa do petista. Os próprios xiitas saíram às ruas para comemorar a conquista dos quase 53 milhões de votos. Um feito que só foi possível porque esses milhões de eleitores acreditaram na imagem amenizada do líder petista e em seu novo discurso, que pregava a necessidade de cumprir os contratos internacionais e realizar uma “lúcida e criteriosa transição entre o que temos hoje e aquilo que a sociedade reivindica”, como explicitou a famosa Carta ao Povo Brasileiro, divulgada no dia 22 de junho do ano passado e assinada pelo próprio candidato. Com um mês de governo, os radicais reapareceram em cena para fazer o que sempre fizeram: oposição. Reclamam da nomeação de um banqueiro tucano para a presidência do Banco Central, Henrique Meirelles, do aumento da taxa de juros e da escolha do senador José Sarney (PMDB) para presidir o Congresso.

Partido acostumado a calorosas discussões, as críticas já eram esperadas. Afinal, como dizia Nelson Rodrigues, toda unanimidade é burra. O Planalto sabia que as primeiras pedradas viriam de dentro de casa. E estava preparado para agir duramente diante dos eventuais excessos, já que uma crise no próprio partido de Lula poderia dar mau exemplo para outras legendas e colocar em risco a confiança do mercado no governo. O sinal de alerta tocou no Planalto e irritou a cúpula do partido quando a senadora Heloísa Helena (AL) decidiu desafiar um dos mandamentos mais sagrados da bíblia petista: a disciplina partidária. Ela não compareceu à sessão do Senado que escolheu José Sarney para a presidência do Congresso no sábado 1º. Sua eleição tinha sido definido pela bancada petista no Senado com o apoio do Planalto. A senadora teve a oportunidade de contestar a decisão durante a reunião da bancada, da qual participou. Mas entre seus companheiros ficou calada. Preferiu as declarações públicas: “Não voto em representante das oligarquias nordestinas.”

O presidente do PT, José Genoino, ameaçou levar à próxima reunião do Diretório Nacional, no final do mês, a proposta da advertência pública à colega. “As decisões das instâncias do partido têm que ser obedecidas, sob pena de o partido se esfacelar. Defendo a fidelidade partidária que possibilita uma ação política unificada”, explicou. O acordo do PT com Sarney foi uma retribuição ao apoio do ex-presidente da República à candidatura Lula ainda no primeiro turno das eleições. Representante da corrente trotskista Democracia Socialista, Heloísa Helena já havia se atritado com a direção do PT ao se recusar a fechar acordo com o PL e a se candidatar ao governo de Alagoas, por considerar o partido um depósito de partidários do ex-presidente Fernando Collor. Ela não fez campanha para Lula em Alagoas. Foi o único Estado onde Lula perdeu para o tucano José Serra.

Outra postura dos radicais que irritou o Planalto foi cobrar do governo obediência não ao programa defendido na campanha, mas a um documento que foi aprovado no XII Encontro Nacional do partido, em dezembro de 2001, no Recife. Eram diretrizes de um futuro programa de governo que propunha, entre outras coisas, a ruptura com o modelo econômico vigente no governo FHC e a “denúncia” dos acordos com o FMI. Diante da repercussão negativa desses termos entre os setores de centro que Lula pretendia atrair, a comissão encarregada de escrever o programa amenizou o seu conteúdo. Na verdade, durante a campanha o PT seguiu uma receita já testada pelo primeiro-ministro britânico, Tony Blair. Em 1997, ele conseguiu acabar com 18 anos de hegemonia do Partido Conservador, ao amenizar o programa do esquerdista Partido Trabalhista, levando-o para o centro do leque ideológico. “Lula é presidente da República e chegou ao poder através de um amplo
arco de alianças. Ele não foi eleito só pelo voto dos petistas”, observou
a cientista política Maria Vitória Benevides, que integrou a comissão
que redigiu o programa de Lula.

“Os radicais de esquerda e de direita que acreditaram que as propostas do presidente eram só para ganhar a eleição agora descobriram que não, que é um programa para o governo e para o País”, reagiu o ministro da Fazenda, Antônio Palocci, que tinha mais motivos ainda para ficar irado com seus companheiros da esquerda. Na sexta-feira 31, o debate entre
a bancada do partido na Câmara e o ministro foi gravado e divulgado
pela imprensa, o que provocou uma suspeita de que algum parlamentar tenha levado um gravador escondido para a reunião. Alvo principal da
ira xiita, Palocci, que hoje integra a corrente majoritária Articulação/Unidade na Luta, fez questão de lembrar que já foi um deles: pertenceu ao grupo trotskista Liberdade e Luta: “Não posso negar minha própria história e dizer a eles que não têm o direito de ser radicais, porque eu já rezei nessa cartilha e, por isso mesmo, tenho de
respeitá-la, como respeito e como eles me respeitam.”

O clima entre os petistas piorou ainda mais com a exigência do senador Aloizio Mercadante (SP) para que o deputado João Batista de Araújo, o Babá (PA), integrante da radical Corrente Socialista dos Trabalhadores, se retrate publicamente com o ministro da Fazenda. Babá disse que ele é “inconfiável até mesmo como médico”, referindo-se à profissão de Palocci. Mercadante vai pedir a punição do deputado porque considerou que ele foi ofensivo e desrespeitoso com Palocci. “O ministro da Fazenda pode agradar aos banqueiros, aumentando os juros e mantendo a política econômica contrária às determinações do PT, e ainda não podemos criticar”, queixa-se Babá. “Divergir é sagrado no PT. Mas o que não é admitido é que deputados petistas façam oposição ao governo”, advertiu o líder na Câmara, Nelson Pellegrino (BA), ele próprio um integrante de uma ala radical, a Força Socialista. Da mesma corrente de Heloísa Helena, a senadora Ana Júlia procura ser mais moderada, afirmando que prefere reservar suas críticas para o público interno.

O presidente Lula deu aval ao seu ministro da Casa Civil, José Dirceu, para tentar enquadrar os radicais. Toda essa briga expõe a principal característica do PT, que na terça-feira 11 completa 23 anos de existência: as intensas disputas e debates ideológicos, que agora
ganham amplificadores com a chegada do partido ao poder. Os radicais são poucos, mas barulhentos. Dos 91 deputados, 35 são das alas radicais. Dos 14 senadores, quatro são das correntes radicais. Ao assumir, Lula reservou espaços no poder para alguns representantes
de tendências radicais, principalmente a Democracias Socialista, criada sob inspiração das idéias do revolucionário russo Leon Trotsky. Ironicamente, é a mesma tendência de Heloísa Helena. Além de Miguel Rosseto, ministro do Desenvolvimento Agrário, e José Fritsch, secretário especial de Aquicultura e Pesca, o economista gaúcho Arno Agustín é outro trotskista que chegou ao poder. Secretário-executivo adjunto do Ministério da Fazenda, Arno é subordinado justamente a Palocci. A corrente Força Socialista foi contemplada com a liderança do PT na Câmara, ocupada por Nelson Pellegrino (BA). Mas alguns foram cortados. É o caso do deputado Virgílio Guimarães (MG), da DS, vetado pelo Planalto para ocupar a liderança do governo no Congresso, cargo oferecido na semana passada ao PMDB.

O ministro José Dirceu enviou um recado: o de que as portas do
PT estão abertas para os mais rebeldes, que poderão ter o mesmo destino dos integrantes da Convergência Socialista e da Causa
Operária, tendências expulsas do PT em 1992 e em 1990. Mas eles
não querem deixar o partido. Sabem que fora dele seus protestos perderão força. A crise interna do PT não implodirá a maioria parlamentar que o governo conseguiu costurar no Congresso. Nem evitará a aprovação de projetos importantes que o presidente enviará ao Congresso na segunda-feira 17, quando deputados e senadores começam a trabalhar. Mas Lula terá que repetir em seu próprio partido a mesma costura política feita com setores de centro e de direita para ganhar
as eleições e garantir a governabilidade.

DIZ QUE FUI POR AI

O sumiço de Chico Ferramenta daria um perfeito samba na voz de, quem sabe, Zeca Pagodinho: a história do sujeito que saiu de casa para um compromisso, parou no bar e acabou perdendo o rumo. A alegria terminou na quarta-feira, que para Chico foi de cinzas, quando a mulher foi buscá-lo com a polícia num hotel do centro. Seria cômico se não fosse trágico. O carnaval de Chico, prefeito petista de Ipatinga (MG), a 209 quilômetros de Belo Horizonte, mobilizou as Polícias Civil, Militar e Federal, o Ministério Público, o Ministério da Justiça e até o presidente Lula. O episódio causou constrangimento no PT e na família do ex-desaparecido e culminou no pedido de licença do prefeito, por tempo indeterminado, seguindo orientação médica. Tudo isso porque, às 11h30 da segunda-feira 3, Chico deixou seu apartamento na capital mineira para encontrar a mulher, a deputada estadual Cecília Ferramenta, com quem iria almoçar. Não levava documentos nem celular, mas estava munido de R$ 1.500. E não apareceu no almoço.

Foi visto pela última vez em um restaurante, às 17 horas do mesmo dia. Segundo o dono do estabelecimento, ele parecia sonolento e deitou a cabeça na mesa. Dali, depois de uma garrafa e uma lata de cerveja, o prefeito rumou para o Hotel Sol Meliá. Durante as 48 horas que por lá ficou, saiu do quarto apenas para frequentar a piscina e a sauna. Enquanto isso, a deputada Cecília suspeitava de sequestro ou assalto. O secretário nacional de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, desembarcava em Belo Horizonte para acompanhar as investigações. Vereadores de Ipatinga também rumavam para a capital. Lula pedia à PF para dar prioridade ao caso. O mistério se resolveu quando um funcionário do hotel reconheceu o prefeito e avisou à polícia. Duas garotas de programa foram ouvidas pelos policiais, que deram o caso por encerrado e se calaram sobre o assunto. Mas Chico, que já pediu desculpas à mulher, poderia ter avisado, inspirado no samba de Zé Keti: “Se alguém perguntar por mim, diz que fui por aí.”

Ines Garçoni

INCÊNDIO NA ÚLTIMA HORA

O final do jogo, ninguém perdeu, mas
não houve felicidade geral. Essa foi a sensação que ficou no Congresso após
a disputa em torno da eleição das mesas diretoras. Como fora previamente acertado, o deputado João Paulo
(PT-SP) levou a presidência da Câmara
e José Sarney (PMDB-AM) a do Senado. Mas, por pouco, o acordo entre governo
e PMDB não foi para o espaço. Em troca do voto dos oposicionistas para Sarney,
o Planalto havia garantido o apoio dos petistas a Geddel Vieira Lima (PMDB-BA) para a primeira-secretaria da Câmara.
No entanto, um movimento comandado pelo ex-governador peemedebista
Orestes Quércia, com o apoio de Sarney
e até do senador Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), tentou
colocar José Pinotti (PMDB-SP) na cadeira de Geddel. Foi o suficiente para o presidente do partido, Michel Temer (SP), lembrar ao Planalto que seu grupo pode ser “o fiel da balança” em assuntos polêmicos como as reformas constitucionais.

Passada a disputa, Geddel garante que vai apoiar as reformas, mas fica na oposição. Continua defendendo a tese de que “o PMDB não pode ir para o governo, sob o risco de ser carimbado definitivamente como fisiologista. Nós não podemos ser apenas um partido fornecedor de deputados para qualquer situação”. Essa posição, no entanto, é minoritária na legenda. Quando os trabalhos do Congresso começarem, no próximo dia 17, o partido estará computado na base do governo. A mesa diretora contemplou ainda velhos caciques, como o quase eterno, líder do PFL, o deputado Inocêncio Oliveira (PE), na primeira vice-presidência, e o rei do baixo clero, Severino Cavalcanti (PPB-PE), na segunda secretaria. No Senado, o PT ficou com a primeira vice, nas mãos de Paulo Paim (SP), e o PFL com a primeira secretaria, destinada a Romeu Tuma (SP). O presidente Luiz Inácio Lula da Silva contará com 323 deputados e 52 senadores entre os seus defensores. É mais do que os números necessários para fazer as reformas, mas essa maioria absoluta não veio das urnas. Só foi conquistada no tradicional troca-troca de última hora. O apelo do poder levou 46 deputados e quatro senadores para o lado do presidente.

Antônia Márcia Vale