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LUTO
A morte do marido, Néstor, tornou-se um importante elemento
na reeleição da presidente argentina, Cristina Kirchner

Em uma análise superficial, os atos da presidente da Argentina, Cristina Kirchner, poderiam indicar um suicídio político. Candidata à reeleição – o pleito será no dia 23 de outubro –, ela tem contrariado os manuais do marketing eleitoral. Em vez da superexposição, Cristina tem buscado o isolamento. Nas últimas semanas, faltou a diversos eventos públicos. No lugar de roupas coloridas, passou a usar sóbrios trajes escuros. O sorriso desapareceu e a maquiagem foi reduzida. Nos discursos cada vez mais raros, a agressividade deu lugar a palavras brandas. Cristina mudou radicalmente sua postura desde a morte do marido, Nestor Kirchner, seu antecessor no comando do país. Intencionais ou não, as mudanças foram positivas para o futuro político da presidente. Segundo todas as pesquisas, ela deve vencer a reeleição ainda no primeiro turno, com mais de 50% dos votos. O que explica a vitória avassaladora? Além de medidas populistas, como o lançamento de pacotes econômicos que inflaram o déficit público, Cristina tem se aproveitado da adoração dos argentinos por políticos marcados pelo sofrimento. Foi assim com a família Perón, perseguida por inúmeras tragédias; pode ser assim com ela.

Entre os rivais da presidente, o clima de derrota já se tornou público. A oposição agora se prepara para o pior cenário: uma mudança constitucional que permita a Cristina concorrer a um terceiro mandato. Há rumores de que um grupo conhecido como Ultra K, fiel ao governo, pretende apresentar a proposta ao Congresso. O assunto começou a ser levado a sério após denúncias de Elisa Carrió, segunda colocada na última eleição ao Executivo, em 2007. Postulante novamente à Presidência, a líder da Coalizão Cívica disse haver um acordo entre Cristina e o candidato socialista, Hermes Binner, da Frente Ampla Progressista, para modificar a carta magna do país. “Sob o pretexto de alterar a Constituição para o modelo parlamentarista, o governo esconde o objetivo de promover a reeleição”, disse Elisa. Para muitos grupos kirchneristas, a defesa do terceiro mandato não é apenas uma bravata. Eles prometem, para o dia 27 (primeiro aniversário da morte de Néstor Kirchner), manifestações nas ruas em prol das mudanças legais que permitam a Cristina permanecer no poder.

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PODER SIMBÓLICO
Inaugurado em julho, mural com 31 metros de altura com a imagem de Evita
Perón mostra a tentativa de Cristina Kirchner de se apoderar do legado peronista

Para evitar alterações na legislação, opositores do governo centram forças nas eleições para o Parlamento, que acontecem junto com o pleito presidencial. Serão eleitos 130 dos 257 deputados federais e 24 dos 72 senadores. Qualquer processo de mudança na Constituição argentina vai precisar da aprovação de pelo menos dois terços da Câmara Federal e do Senado. De acordo com estimativas de jornais locais, a base de sustentação da presidente seria insuficiente para promover uma reforma constitucional. Porém, com a alta popularidade e o clima de adesão ao governo, não seria surpresa se a presidente conseguisse ampliar sua base de apoio.

Com a vitória nas urnas praticamente assegurada, Cristina dá prosseguimento a seu projeto de poder. É no campo da simbologia política que ela investe com mais força. A presidente postula o que muitos já tentaram sem sucesso: o legado do casal Juan Domingo e Evita Perón, eternizados no imaginário argentino e ainda hoje idolatrados no país. Segundo adversários, Cristina não mede esforços para transformar seu marido em mito. Bustos e denominações de locais públicos com o nome de Néstor se multiplicam pelo país. Até os torneios da primeira divisão de futebol passaram a se chamar Néstor Kirchner. Pela internet, imagens associando Néstor e Perón se propagam em correntes promovidas por aliados.

Cristina também tem feito inúmeras homenagens a Evita Perón. Em julho, inaugurou um mural com 31 metros de altura com a imagem da ex-primeira-dama argentina, um esforço para mostrar ao país que o kirchenerismo é o peronismo do século XXI. “A lógica é demonstrar uma continuação histórica entre os dois movimentos”, diz o cientista político Aldo Fornazieri, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. “Em um momento de vazio na política argentina, esta aproximação se torna um enorme ativo.” Não é a primeira vez que a tradição peronista tenta se perenizar no poder – o que, aliás, jamais deu certo. Resta saber se Cristina vai conseguir alcançar essa façanha. 

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