Senador, que trocará política por literatura, adverte: equipe econômica tem que abrir espaço para o crescimento sob risco de transformar Lula em Walessa

O senador Roberto Saturnino Braga, do PT do Rio de Janeiro, é um político curioso. Lutou 50 anos ao lado da esquerda e dos nacionalistas. Numa trajetória de altos e baixos, bateu no fundo do poço em 1988, ao decretar a falência da prefeitura carioca, depois de ter sido o primeiro prefeito eleito da capital. Voltou lentamente ao cenário, primeiro como vereador e, desde 1998, como senador. Exatamente quando o sonho da vida inteira encontra terreno para se concretizar, com a eleição de Lula, ele anuncia a intenção de trocar a política pela literatura. Já lançou três livros de contos e, no ano passado, publicou o primeiro romance, Quarteto (ed. Record), antes de começar a atrair as atenções como relator do Plano Plurianual (PPA), que orientará os investimentos nacionais até 2007. Entrou em colisão com o ministro da Fazenda, Antônio Palocci, ao propor a redução da meta de superávit fiscal em 0,5% para 2005, para abrir espaço ao crescimento. Sem essa revisão, na sua opinião, Lula pode repetir a frustração do polonês Lech Walessa, que se submeteu ao FMI e “acabou desmoralizado, perdeu as eleições, sumiu do mapa”. Se isso acontecer no Brasil, a democracia estaria em risco porque o País “não pode sofrer o novo impacto de uma decepção popular ampla, profunda”. Para o relator, Lula se equilibra entre o medo de repetir a tragédia de Salvador Allende, o chileno derrubado em 1973, e o perigo de cair no “pântano de Walessa”. Mas ele manifesta confiança no presidente, enumera ações que apontam para o desenvolvimento e a justiça social e diz que só continuará na política se isso for importante para o sucesso do governo. Saturnino, 73 anos, defende que todo político, depois dos 70, deveria se aposentar por falta de energia. Os exemplos de Antônio Carlos Magalhães e Leonel Brizola, segundo ele, só reforçam a tese. “Já deveriam ter se aposentado há dez anos.”

ISTOÉ – O PPA tem sido peça de ficção porque o Estado não tem feito grandes investimentos. O que garante que o sr. não esteja escrevendo mais uma ficção?
Roberto Saturnino Braga

O PPA atual prevê um aumento da taxa de investimentos de 17% do PIB para uns 20% em 2007. Não há possibilidade de crescimento com um investimento de apenas 17%. O Brasil já investiu até 24%. Só o Estado já garantiu 12%, mas recuou tanto que hoje só investe uns 2% ou 3%. O que pode garantir a passagem da ficção para a realidade é o investimento governamental.

ISTOÉ – O governo Lula tem indicado essa tendência?
Roberto Saturnino Braga

No PPA já há indicativo, mas ao meu ver ainda muito  contido pelo superávit fiscal de 4,25%. Eu proponho uma redução de 0,5% em 2005 para liberar mais para o investimento. Em 2004 temos de manter em 4,25% porque assim exige a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias). Mas em 2005 já baixaria para 3,75%. No ano seguinte, para 3,5%. Em 2007, seria de 3,25%.

ISTOÉ – Isso não esbarra com no FMI?
Roberto Saturnino Braga

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O acordo acaba no fim deste ano e a partir de 2005 o Brasil estará livre. O que o governo não quer é deixar que a relação dívida/PIB continue a crescer. A redução gradativa que vou propor mantém essa relação em 48% ou 49%.

ISTOÉ – O governo concorda com sua proposta?
Roberto Saturnino Braga

O ministro Palocci não aceita a redução de 0,5% na meta de superávit em 2005. Ele acha cedo para sinalizar mudança na política econômica, mas eu discordo. Devemos acender a luz verde agora, e em 2005 o governo deve retomar os investimentos públicos em infra-estrutura. Sem isso, não adianta pensar em emprego. O mercado sozinho ficaria em níveis medíocres de crescimento, 3% ou 3,5%. Podemos até adiar a negociação do PPA para abril, mas eu não vou retirar minha proposta. Não quero que Lula vire um Lech Walessa, que foi uma grande expectativa para o mundo. Ele mudou as relações políticas, mas não mudou as econômicas em nada porque ficou amarrado às exigências do mercado internacional. Acabou desmoralizado, perdeu as eleições, sumiu do mapa. No Brasil, isso seria muito perigoso para o regime democrático. O Brasil não pode sofrer o novo impacto de uma decepção popular ampla, profunda. Não sei o que seria do nosso sistema político. Trabalho muito para que as expectativas sejam preenchidas, ainda que não totalmente. Lula prometeu dez milhões de empregos, mas se gerar oito ou nove milhões, tudo bem. Só não pode é continuar do jeito que está.

ISTOÉ – O sr. acha que a equipe econômica exagerou nas preocupações em evitar o caos?
Roberto Saturnino Braga

Acho que sim. No primeiro ano precisava ser feito o que foi feito, mas nem tanto. A elevação dos juros foi demasiada, refletindo o medo da desestabilização. Lula trilha um caminho muito perigoso para fugir da síndrome João Goulart ou Salvador Allende, um desastre que poderia ter ocorrido se ele não tivesse puxado o freio para controlar a inflação e a perda de parâmetros na macroeconomia. Mas tampouco pode escorregar para a síndrome Lech Walessa, igualmente catastrófica em termos de estabilidade democrática. O governo Lula é uma trilha escorregadia, estreita, uma cumeeira que escorrega à esquerda para o caos do Allende e do Jango e, à direita, para o pântano do neoliberalismo de Walessa, que fez o equilíbrio e foi uma decepção. Se Lula tiver êxito, e eu confio que tenha, em oito anos terá mudado não só o Brasil, mas o mundo. O exemplo do Brasil e o desgaste do neoliberalismo vão levar a uma revisão da ortodoxia que domina o mundo. Mas para isso o País tem de crescer. Ele está há 25 anos sem crescer e o resultado é essa desestruturação da sociedade, descrença popular, criminalidade, banditismo, concentração brutal, privilégios e transferência de renda para os capitalistas com dinheiro aplicado. Só no crescimento você interrompe esse fluxo maldito. Distribuição sem crescer é muito difícil, um jogo de soma zero. Quando há crescimento, você pode distribuir na margem e melhorar a justiça social sem provocar a sabotagem da elite.

ISTOÉ – O Brasil já cresceu muito sem distribuição, sempre com concentração. Qual é a vacina do PPA contra o crescimento concentrador?
Roberto Saturnino Braga

Muita coisa, do Bolsa-Família aos programas de saneamento e habitação, a transposição do rio São Francisco. Tudo tem uma dimensão social enorme, como a erradicação do analfabetismo, e depende de investimento.

ISTOÉ – O presidente disse que fará a transposição das águas do rio São Francisco mesmo se precisar carregar água em baldes. Ele pode precisar fazer isso?
Roberto Saturnino Braga

Se não reduzirmos um pouco esse superávit, é possível que ele tenha de carregar. A transposição será para Lula o que Brasília foi para JK. O novo São Francisco é a Brasília de Lula.

ISTOÉ – É o investimento mais vultoso do PPA?
Roberto Saturnino Braga

Não. São as hidrelétricas e os investimentos da Petrobras, absolutamente necessários para sustentar o crescimento.


ISTOÉ – Quando o ministro Guido Mantega (Planejamento) anunciou o PPA com cifras de R$ 1,85 trilhão, a oposição o chamou de exagerado. Poderemos ter tanto dinheiro?
Roberto Saturnino Braga

Teremos, se cumprirmos as metas de crescimento de 3,5% este ano, depois 4,5%, até 5%. Cá para nós, eu preferiria 6%, mas que sejam 5%. A economia brasileira sempre responde de forma muito rápida. Há 50 anos eu acompanho a economia brasileira e sempre houve relação entre crescimento e inflação. A pressão inflacionária vai voltar.

ISTOÉ – O grande medo de todos que viveram a hiperinflação é de ela voltar num cenário de crescimento. Vale a pena correr o risco?
Roberto Saturnino Braga

Vale, porque temos hoje mecanismos de aferição e controle muito mais eficazes. Você pode acompanhar dia a dia as flutuações e acionar mecanismos de controle, fiscais e monetários. O próprio crescimento do PIB já equilibra. Se você aumenta o PIB e a oferta, vai tendo o controle em fase de ascensão, que é bem diferente do controle em fase de depressão.

ISTOÉ – O PPA prevê mudar a matriz do transporte para as ferrovias e hidrovias. Não é utopia planejar essa substituição em um país continental, criado à imagem da indústria automobilística?
Roberto Saturnino Braga

A soma dos lobbies de empresas automobilísticas e empreiteiras levou a um rodoviarismo insustentável. Não é utopia, mas é preciso gerar capacidade de investimento. Vamos fazer isso aliando a diminuição do superávit ao crescimento. Pelo menos poderemos fazer o começo da mudança, com investimentos ferroviários da Norte–Sul à Transnordestina. Vamos modernizar, construir trechos, concluir os ramais para o Centro-Oeste. As hidrovias passarão a ter um uso muito maior. Nossa navegação de cabotagem foi reduzida a zero e não temos mais marinha mercante. Já fomos uma semipotência, exportando com nossos navios 40% de nosso comércio, e hoje só temos 2% ou 3% e assim mesmo só por causa da Petrobras. A própria Vale do Rio Doce acabou com sua frota.

ISTOÉ – O PPA vai priorizar algum segmento, como Getúlio Vargas fez com a siderurgia e Juscelino com a indústria automobilística?
Roberto Saturnino Braga

Regionalmente, o maior beneficiário será o Nordeste, o Norte também. Prevê-se muito investimento em ciência e tecnologia voltada para a Amazônia. Tecnologia é um fator estratégico. Há programação para dobrar em termos de PIB, passar para 2%, distribuídos por todos os setores estratégicos: biotecnologia, petróleo, energia, transportes.

ISTOÉ – O ministro da Reforma Agrária, Miguel Rossetto disse que fez muito pouco pela reforma agrária no ano passado. O sr. concorda com ele?
Roberto Saturnino Braga

Concordo. Não se faz reforma agrária sem dinheiro. É uma ilusão dizer: vamos desapropriar e pagar em títulos. Não funciona. Você tem de investir no assentamento, assistência, infra-estrutura. Eu acho que o governo fará a reforma agrária.

ISTOÉ – O sr. acha ou torce?
Roberto Saturnino Braga

Eu acredito. Vejo na base do PT uma certa descrença. Não é à toa que as bases estão inquietas e alguns até saltaram fora. No dia em que eu perder a confiança, também entrego os pontos. Mas mantenho essa confiança. Acho um absurdo pensar que Lula vá chegar ao fim sem cumprir seus compromissos. A promessa de assentar 530 mil famílias é ousada, dobra as expectativas do próprio MST.


ISTOÉ – O argumento dos que saíram do PT é de que o governo não deu sinal de que fará mudanças. O sr. viu algum sinal?
Roberto Saturnino Braga

Vi muitos. A Petrobras voltou a ser desenvolvimentista, não só uma empresa para dar lucro aos acionistas. Voltou a exigir nas licitações um percentual de 60% de equipamentos nacionais, a encomendar navios aqui, voltou a atuar na petroquímica e a se preocupar com o desenvolvimento, mesmo em parceria com estrangeiros. O setor elétrico também prevê investimentos. As duas hidrelétricas do Rio Madeira são fantásticas e há outra grande no Xingu. Outro sinal é o BNDES, que tinha virado um banco qualquer e voltou a investir, financiando as exportações e a infra-estrutura. Vai financiar os empreendimentos ferroviários e a construção de navios. O BNDES é a peça principal do desenvolvimento e de seu controle estratégico. O Carlos Lessa (presidente do BNDES) recebe críticas porque contraria interesses poderosos. As privatizações acabaram, e restabeleceu-se a importância do controle nacional sobre certos setores. Isso incomoda quem quer dominar esses setores. O BNDES também terá um papel importante na justiça social, com o microcrédito.

ISTOÉ – Mas o BNDES de Lula ainda não está financiando os pequenos.
Roberto Saturnino Braga

Ele desfez os sistemas velhos e está montando um novo para entrar maciçamente no microcrédito produtivo. O microcrédito
para o consumo, para comprar geladeira, endivida o pobre de forma perversa. Sou a favor do microcrédito para a produção de empregos
nas microempresas.

ISTOÉ – Os socialistas sempre criticaram a tese de fazer o bolo crescer para dividir depois. O sr. falou muito do crescimento do bolo, mas e a divisão?
Roberto Saturnino Braga

A divisão do bolo é o Nordeste, a reforma agrária, o Bolsa-Família, a agricultura familiar.

ISTOÉ – Tudo isso já existia no governo Fernando Henrique Cardoso.
Roberto Saturnino Braga

Mas foi muito ampliado. O financiamento à agricultura familiar já se multiplicou por três e vai crescer mais. As aplicações em saneamento vão quadruplicar. A habitação de baixa renda também vai crescer muito. Agricultura e habitação geram emprego e renda interna sem pressão na balança de pagamentos porque você não importa nada.

ISTOÉ – O sr. lançou seu primeiro romance, Quarteto. Literatura é melhor do que política?
Roberto Saturnino Braga

Desde muito jovem gosto de literatura e sempre fiz meus ensaios, mas nunca tive tempo de me dedicar. Quero sair da política. Posso até rever essa decisão em função das necessidades do projeto Lula, no qual estou muito engajado por achar que seu sucesso é
decisivo para os destinos do País. Mas hoje minha decisão é encerrar o mandato e me dedicar só à literatura. Depois de uma certa vivência, você não tem mais o fluxo de energia que a política exige. A população pensa que a vida política é muito confortável, mansa. Uma ova! É de uma exigência enorme de trabalho, que uma pessoa acima de 70 anos tem dificuldade para atender.

ISTOÉ – Há vários exemplos de pessoas bem mais velhas que continuam na política com energia, como Leonel Brizola e Antônio Carlos Magalhães.
Roberto Saturnino Braga

Pois é. Eu acho que ambos já deveriam ter se aposentado há dez anos, exatamente porque vivem dando demonstração de defasagem, de desatualização. O mundo se transformou e eles ainda estão apegados a realidades anteriores.


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