O dia de São José, 19 de março, é sagrado para os sertanejos que vivem sob o sol escaldante do semi-árido: se chover, o ano vai ser bom. Sinal de que outro santo vai entrar em cena – São Pedro, com seu poder de mandar chuva para aliviar o sofrimento de quem planta num solo pedregoso sem ver resultado. O sertão, com temperatura média de 27ºC, abrange os nove Estados do Nordeste, além de uma parte de Minas Gerais e do Espírito Santo, e abriga 1.421 municípios, ou 15,5% da população brasileira. Um povo submetido às intempéries da seca, causada pelo baixo índice pluviométrico – cerca de 750 milímetros por ano. Há muito que se conhecem algumas soluções para o problema. A transposição do rio São Francisco, a perfuração de poços e a construção de barragens são algumas delas. Mas, nos últimos anos, a alternativa que se tem mostrado mais vantajosa é a cisterna, uma espécie de grande caixa-d’água subterrânea, simples e de fácil implantação, capaz de captar e armazenar água da chuva, que é pouca, mas cai. Cada uma custa cerca de R$ 1.400. Cheia, pode abastecer, com 16 mil litros de água potável, uma família de cinco pessoas por seis a oito meses, suficiente para beber, cozinhar e fazer a higiene. Um verdadeiro milagre para santo nenhum botar defeito.

Aposentar a velha lata d’água é o sonho das mulheres de Itaíba, um município de 26.799 habitantes – 18.062 na área rural – encravado na caatinga pernambucana, a 345 quilômetros de Recife. Equilibrando o utensílio na cabeça, elas caminham, em média, quatro quilômetros em busca de uma água dividida com animais e contaminada com esterco e urina. Quando a reza não atrai chuva, vão aos prefeitos mendigar carros-pipa para comprar um galão por R$ 3. A água destes caminhões também não é garantia de qualidade. Pelo contrário. Buscam o mesmo líquido e apenas transportam para os vilarejos. Mas no sertão a água é uma questão política e os “pipas” são trocados por votos. Por isso, as 780 cisternas que o governo federal está construindo – com o apoio da ASA (Articulação do Semi-Árido) e de entidades como a CUT e a poderosa Federação Brasileira de Bancos (Febraban) –, em 20 cidades, já viraram motivo para perseguição no interior de Pernambuco. “A água serve para dominar o povo no cabresto. O chefe político se sente prejudicado porque as cisternas significam a independência do povo. Prefeitos já me disseram isso”, conta Denise de Assis, coordenadora da ASA. “Muitos são donos de carros-pipa”, denuncia. Seu sonho é ver o governo cumprir a promessa de construir um milhão de cisternas no semi-árido e proporcionar água para cinco milhões de pessoas.

Na luta por esta causa, Denise esbarra num inimigo histórico: o coronelismo. Resignado, o povo chama a cidade de “Itaibala” e coleciona “causos” de perseguição política. Depois de uma reunião na casa de um vereador da oposição, onde o assunto eram as cisternas, Denise e uma amiga foram seguidas por um carro. “Eu acelerava e ele também. Eu reduzia e ele também. Entrei numa paróquia e fomos com o padre na delegacia pedir uma escolta, mas os policiais não queriam. Só escoltaram a gente porque o padre pediu muito. Logo depois, a casa do vereador foi baleada”, narra e conclui: “A tática é a da pressão pelo medo. Eles matam, todo mundo vê e ninguém denuncia, senão morre também. A polícia, se não está com eles, é perseguida.”

Num dos cursos ministrados pela ASA para capacitar a população a lidar com as cisternas, Denise se emocionou ao ouvir o depoimento de um homem que, depois de passar oito horas atrás de água, chegou em casa tão exausto que derrubou a lata cheia. Os filhos lamberam o chão. Mas pior que a situação dramática de quem não possui água é constatar que, quando ela existe, é responsável pela morte de milhares de crianças. Uma pesquisa divulgada pelo Unicef há 15 dias revelou que 53% das crianças que morrem no Nordeste estão no semi-árido. Segundo o Sistema Único de Saúde (SUS), uma das principais causas de internação de crianças de até um ano é a diarréia causada pela água de péssima qualidade. O estudo do Unicef aponta ainda que 42% da população entre 0 e 17 anos não tem acesso à rede de abastecimento, poço ou nascente. E a ignorância de um povo que não frequenta a escola ajuda a piorar o quadro: em 89,7% dos lares de Itaíba com crianças de 0 a seis anos, o chefe da família tem menos de três anos de estudo; em 77,1%, menos de um ano. “Eles acham que não faz mal, crescem bebendo isso”, diz Denise.

Em alta –A cerca de 130 quilômetros dali, em Garanhuns (PE), nasceu Lula, amado e idolatrado pelo povo do sertão, que conta com orgulho que “ele nasceu pertinho de nós”. O presidente da CUT, Luiz Marinho, que esteve em Itaíba para inaugurar 90 das 150 cisternas que a central sindical está patrocinando na região, percebeu a popularidade de Lula. A cada menção que fazia ao presidente, aplausos e mais aplausos. Tem motivo. “Antes, a gente vivia da aposentadoria. Hoje, tem o Fome Zero, o Bolsa-Escola”, constata Maria Aparecida Oliveira, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itaíba. Cida, como é conhecida, é a principal responsável pela união da comunidade em torno da construção das cisternas. “Sou muito perseguida por causa disso. Não querem que a gente faça, para poderem manter aquele grupo de dominação”, explica.

Aos 49 anos, Cida tornou-se a primeira mulher presidente do Sindicato de Itaíba: “Precisava de alguém para ajudar as mulheres. A diretoria sempre foi de homens e, não é por nada não, mas homem sempre deixa a desejar.” Vivendo da pequena lavoura de milho e feijão, ela reclama: “Não choveu para colher o ano todo.” Tão aplaudida quanto Marinho na festa, recebeu do presidente da CUT, em seu discurso, um impulso à carreira política: “Cida, ano que vem tem eleição, hein?”, disse. Mas a amiga Denise pede cautela. “Eu digo a ela: ‘Faça isso, não, senão você morre e eu fico aí sozinha na luta.’”

A festa de inauguração das cisternas foi no terreno de Bernadete Conceição, 57 anos, e Noel Freitas da Silva, 54, nos arredores de Itaíba, onde as plantações de palma dividem o solo seco com vacas estiradas, literalmente mortas de sede. Uma tenda em frente à pequena casa de pau-a-pique abrigava cerca de 100 pessoas, nos seus melhores trajes para receber Luiz Marinho e José Lopez Feijóo, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC – cujos trabalhadores doaram 2% do reajuste salarial para o programa. Atrás, a cisterna, ainda vazia esperando pela primeira chuva. Dentro dela, apenas esperanças. Os discursos dos “amigos do Sindicato de São Paulo” eram ouvidos atentamente, sob o sol de mais de 30ºC. “Os prefeitos picaretas não querem resolver o problema para continuar enganando nosso povo”, disse Marinho. Foi endossado por José Aldo Santos, da ASA de Pernambuco: “Os recursos têm de ficar com a sociedade civil. Se o governo der às prefeituras, vamos retroceder.” Aldo se referia à tentativa do Ministério da Segurança Alimentar (Mesa), de José Graziano, de transferir o gerenciamento da verba das cisternas para algumas prefeituras no Nordeste. A ONG é contra, lembrando que a corrupção ainda existe. “O Fome Zero só não avança mais porque os prefeitos criam entraves. Não querem a participação da sociedade porque ela vai fiscalizar”, diz Aldo.

Longe da polêmica, dona Bernadete estava feliz recebendo tanta gente. Há 12 anos, ela e o marido fugiram da seca de Santana do Ipanema (AL). “A gente sempre procura caçar melhora, né? Mas a vida lá era igual”, diz. Pedindo desculpas pela “casinha fraca”, ela chorava, ainda emocionada com a cisterna. “Tô com muita esperança de ver tudo melhorar.” Seu Noel, preparando o churrasco para depois da solenidade, se lamentava: “Tenho meia dúzia de vacas e vendo o leite a cada 15 dias. Metade do dinheiro vai para dar de comer às vacas. O resto a gente fica. A vida do nordestino é sofrida.”

Na luta – Esperançosa também está Michelle Oliveira Vasconcelos, 13 anos, elogiada por Cida em seu discurso: “Esta é uma grande lutadora pela nossa causa!” Michelle, que convive com uma diabete, quer ser como Cida e Denise quando crescer. “Aprendi com elas que é preciso ajudar as pessoas da minha terra. Vou ser médica, é um jeito de ajudar, né?”, diz, determinada. Michelle é a prova de que, organizada e com o apoio do governo e de entidades civis, os sertanejos podem ir ainda mais longe, formando lideranças locais para ajudar no combate às mazelas centenárias do Nordeste. Um dia Michelle saberá que o Brasil é dono da maior reserva mundial de recursos hídricos. E entenderá que a solução para o problema da água no sertão não está nas mãos de São Pedro, e sim nas de pessoas como ela, Cida, Denise, Marinho, assim como nas mãos do presidente Lula, “que nasceu pertinho da gente”.