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Desde julho, o Código de Processo Penal tem novas regras a serem cumpridas. Entre elas, o fim da prisão preventiva para os crimes cujas penas são menores do que quatro anos de reclusão, como furto ou formação de quadrilha. Parte dos magistrados parece descontente com as mudanças e encontrou uma forma de driblá-la. Passaram a estipular fianças milionárias como subterfúgio para tentar manter os acusados na prisão. Na semana passada, a família do estudante Felipe de Lorena Infanti Arenzon, 19 anos, vendeu, às pressas, um carro e um imóvel para pagar os R$ 245 mil determinado pela Justiça, após o rapaz passar três dias na prisão por bater seu Camaro em seis carros e provocar a morte de uma pessoa, em São Paulo. Na mesma cidade, há dois meses, o engenheiro Marcelo Malvio de Lima espatifou um Porsche contra o carro da advogada Carolina Menezes Cintra Santos, que morreu na hora. Teve de pagar R$ 300 mil para responder o processo em liberdade.

A discussão em torno dos valores da fiança tem gerado atritos entre a magistratura e a advocacia. Para advogados e defensores públicos, ao servir de substituta para a prisão preventiva, a fiança transforma-se, injustamente, em uma espécie de pena antecipada, a qual atinge diretamente os acusados de menos recursos financeiros, uma vez que não podem arcar com valores expressivos. “Tornar a fiança impagável é desvirtuamento do que preconiza a lei”, analisa o criminalista Maurício Zanoide de Moraes, professor de Processo Penal da Universidade de São Paulo (USP).

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DÉBITO
Família de Felipe Arenzon, que provocou a morte de uma
pessoa em acidente, vendeu bens para pagar fiança de R$ 245 mil

A Justiça brasileira havia perdido o costume de arbitrar fianças, pois a forma de cálculo era defasada, o que gerava valores irrisórios para os réus. Agora, o mecanismo tem feito acusados de processos criminais se desdobrarem para conseguir fazer frente às quantias estipuladas pelos juízes. O pastor Wladimir Furtado, por exemplo, preso pela Polícia Federal durante a Operação Voucher, que desmontou um suposto esquema de fraudes no Ministério do Turismo, chegou a passar um cheque sem fundos para se livrar da cadeia. Depois, fez apelos na televisão aos fiéis e contou com doações para quitar os R$ 109 mil exigidos pela Justiça Federal do Amapá. “A fiança é aplicada de maneira severa em todos os países democráticos, e nós já temos uma legislação penal bastante liberal”, opina o juiz Edson Aparecido Brandão, diretor da Associação Paulista de Magistrados.

Com as novas regras, o valor máximo de uma fiança no Brasil pode chegar a inacreditáveis R$ 109 milhões. O juiz Marcelo Cerveira Gurgel, da 2ª Vara Criminal de Itabaiana (SE), foi o primeiro a romper a casa dos milhões. Em meados de julho, ele determinou o pagamento de incríveis R$ 54,5 milhões ao acusado de porte ilegal de arma, Hélio Márcio Pereira dos Santos. Contam-se nos dedos os brasileiros que poderiam pagar uma fiança dessas. Ele baseou sua decisão na confissão de Santos de que a arma seria usada para assassinar uma mulher grávida. “Agi de acordo com minha consciência de magistrado e no intuito de proteger a vida, que é inestimável”, declarou Gurgel. A advogada de defesa Marise Alves de Jesus recorreu da decisão e obteve do Tribunal de Justiça de Sergipe a redução da fiança em mil vezes, para R$ 54 mil. Mesmo assim, o acusado não teve condições de pagá-la e continua detido no Presídio de São Cristóvão, em Aracaju.
Há outras medidas cautelares instituídas pelo Código que poderiam ser aplicadas (leia quadro à dir.), mas não são. Levantamento da Defensoria Pública de São Paulo, realizado um mês após as mudanças entrarem em vigor, mostra que a fiança foi o caminho escolhido em mais da metade dos processos acompanhados pelo órgão. “Uma pessoa humilde não pode pagar R$ 5 mil para ser solta. E isso vem acontecendo na maioria absoluta dos casos”, afirma Virgínia Catelan, coordenadora da Defensoria Pública do Dipo (Departamento de Inquéritos Policiais) de São Paulo.

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SOLTO
O engenheiro Marcelo de Lima desembolsou R$ 300 mil
para não ficar preso após acidente com Porsche

O valor da fiança é depositado em juízo. Ao final do processo, ele é devolvido ao réu caso ele seja considerado inocente. No caso de culpabilidade, são deduzidos os valores das custas processuais e de eventual multa, se esta estiver incluída na sentença. “A fiança também é uma garantia de que o réu tem interesse no rápido andamento do processo e de que não vai fugir, pois quer reaver o dinheiro”, diz desembargador carioca Cláudio dell’Orto, diretor da Secretaria de Defesa de Direitos e Prerrogativas da Associação dos Magistrados Brasileiros. Ela só não pode se tornar uma condenação sem julgamento.

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