Na última década, a indústria do tabaco sustentou uma estratégia para financiar estudos sobre a qualidade do ar e os males do fumo passivo. Montou um time de consultores na América Latina preparados para discutir o assunto de uma perspectiva que valorizasse outros poluentes do ar em lugares fechados, como o ar condicionado, com o objetivo de tirar do cigarro o peso de principal culpado pelo surgimento de doenças como o câncer em fumantes passivos. A denúncia faz parte de um relatório sobre as ações da indústria do fumo publicado há cerca de um mês pela Organização Pan-Americana de Saúde. O documento detalha os métodos nada ortodoxos usados pelas empresas para atingir suas metas, entre eles evitar leis mais rígidas e a elevação dos impostos sobre o produto. O trabalho é resultado de uma investigação feita a pedido da entidade pela enfermeira carioca Stella Aguinaga Bialous e pelo jornalista canadense Stan Shatenstein. As informações foram garimpadas durante um ano em documentos da Philip Morris e da British American Tobacco (BAT), as duas líderes do setor na América Latina. Os papéis se tornaram públicos em 1998 por determinação da Justiça americana. De sua casa na Califórnia (EUA), Stella deu a seguinte entrevista a ISTOÉ.

O que a sua investigação revelou?
 
Além de mostrar as políticas da indústria do tabaco, expôs seu relacionamento com os cientistas que cooptou e confirmou que suas estratégias para a América Latina e o Caribe são até mais agressivas do que no resto do mundo. Relatórios internos orientam, por exemplo, a não citar na embalagem a idade permitida para a compra do maço. Mas há países em que as empresas não têm tido sucesso nesse aspecto. No Brasil, o governo acaba de dar prazo de um ano para que as embalagens de cigarro e derivados do tabaco passem a conter a informação de que a venda é proibida a menores de 18 anos e de que a pena para quem transgredir é detenção de seis meses a um ano e multa. Antes, as embalagens traziam o aviso de que o produto era destinado somente para adultos ou maiores de 18 anos.

Seu estudo cita nomes de pesquisadores, alguns brasileiros, que receberam financiamento da indústria para fazer estudos que desviassem as atenções sobre o cigarro. Quais documentos comprovam essas ligações? 
Tudo o que descrevemos está documentado por cartas, mensagens de correio eletrônico, contratos, memorandos e outras correspondências entre os executivos da Philip Morris, da BAT, seus advogados e os consultores citados. Essas duas companhias investiram juntas para patrocinar o Projeto Latino, criado em 1991, que funcionou pelo menos até 1998 ou 1999. No entanto, não encontramos documentos mostrando que foi desativado. O projeto pretendia impedir a criação de leis mais rígidas para limitar o consumo e a publicidade do cigarro.

 Como a indústria selecionou os consultores?
Quem são eles?
O grupo de consultores para a América Latina era composto de 13 especialistas de sete países (Argentina, Brasil, Chile, Costa Rica, Equador, Guatemala e Venezuela). Procuraram selecionar professores universitários e cientistas ligados a centros de pesquisa com habilidade para se relacionar com jornalistas. Na Argentina, o escolhido foi um cardiologista prestigiado, que também era amigo pessoal do presidente Carlos Menem. Esse médico teve influência decisiva no veto presidencial a uma lei que proibiria o fumo em locais fechados. Embora alguns consultores tivessem experiência com a mídia, outros precisaram de treinamento. A indústria investiu também na melhora de seus conhecimentos e de currículos para intervir no debate. Há uma carta dos advogados à indústria discutindo a situação de um consultor do Equador que não tinha outras credenciais além da formação de médico. Posteriormente, ele foi nomeado pesquisador adjunto de um estudo sobre as condições do ambiente em edifícios e suas relações com a saúde.
 

 A sra. pode dar exemplos da atuação dos cientistas brasileiros?
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Claro. Uma das orientações dadas pela indústria aos pesquisadores ligados a ela foi ocupar espaço na imprensa. Há um artigo publicado por um grande jornal em 1998, de autoria de dois professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro ligados ao Projeto Latino, que permite observar claramente essa diretriz. Nele, eles garantem que outros fatores poluentes do ar seriam mais importantes do que a fumaça do cigarro. No mundo todo foram publicados artigos semelhantes. Os consultores afirmavam que eram fracas e não conclusivas as evidências de que a fumaça ambiental do tabaco poderia causar pequeno aumento de risco para doenças durante a exposição prolongada no trabalho ou em casa. Nos últimos anos, porém, todos os trabalhos não patrocinados pela indústria confirmam que a exposição ao fumo passivo causa câncer, doenças respiratórias e cardiovasculares. Outro exemplo é uma carta enviada
em 1995 por um professor da Universidade de São Paulo aos advogados da indústria para perguntar quais nomes deveria incluir como patrocinadores oficiais de um seminário a ser realizado em São Paulo.
As companhias se preocupavam em não ter contato direto com os consultores e para isso contrataram escritórios de advocacia. Além disso, muitos financiamentos de pesquisas foram feitos por meio do Center for Indoor Air Research (Ciar), que fechou as portas em 1998 por acusações de fraude. Há uma carta dos advogados da BAT a um consultor da Costa Rica advertindo que a percepção das ligações entre esses cientistas
e a indústria poderia tornar a operação inútil.

 Quais as outras artimanhas usadas pelo Projeto Latino? 
Os consultores deveriam produzir e divulgar dados científicos
com a finalidade de desviar a atenção da fumaça ambiental do tabaco.
A intenção não era necessariamente fraudar estudos, mas realizar pesquisas com o objetivo de mostrar que os problemas decorrentes
da má qualidade do ar dos ambientes fechados são causados por
outros agentes – e não pela fumaça do cigarro –, como a má ventilação ou a poluição do lado de fora. No entanto, como essas informações
vêm de estudos patrocinados pela própria indústria do tabaco, obviamente não são isentas.

 Os pesquisadores receberam dinheiro por esse trabalho? 
De acordo com estudo recente do cardiologista Stan Glantz
e do clínico Joaquin Barnoya, da Universidade da Califórnia, houve consultores que receberam de US$ 10 mil a US$ 50 mil. Mas não há documentos sobre a frequência ou forma de pagamento. O trabalho revela também que em 1994 havia uma projeção de verba de
US$ 680 mil para gastos com o Projeto Latino.

 O que o fumo passivo causa?
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Um estudo mostrou que 30 minutos de exposição ao fumo passivo causa alterações vasculares semelhantes às de fumantes. Um relatório da Organização Mundial de Saúde mostra que o fumo passivo aumenta 30% o risco de um não-fumante ter câncer de pulmão. Nos Estados Unidos, a estimativa é de que a exposição ao fumo passivo seja a causa de 35 mil a 60 mil mortes por ano por doença coronariana, porque aumenta o risco de ataques do coração.

Como a indústria reagiu às acusaçõescontidas no relatório? 
A indústria fez declarações oficiais em vários países. Na Nicarágua e na Jamaica, disse que não há comprovação dos males do fumo passivo. E um executivo da Philip Morris afirmou que o relatório era notícia velha porque os documentos estavam desde 1998 na internet. É verdade que os papéis já existiam, mas nunca tinham sido examinados. E em outros locais, as empresas declararam saber que as suspeitas sobre os prejuízos causados pelo fumo passivo são opiniões de um ou outro pesquisador. A reação da indústria vai depender do impacto das informações na mídia e de como elas forem utilizadas pelos grupos antitabagistas, pelos profissionais dos programas de controle do tabagismo e da saúde pública.