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Conhecido por retratar como ninguém a saga dos judeus americanos, o escritor Philip Roth aborda o tema em uma perspectiva pouco usual no seu mais recente romance, “Nêmesis” (Companhia das Letras). No verão de 1944, a poliomielite era sinônimo de deformações físicas e, não raramente, de morte. Nesse contexto, Roth mostra com uma escrita vigorosa os estragos provocados pelo vírus na comunidade judaica de Weequahic, em Newark, por meio da trajetória do atlético Bucky Cantor, o professor responsável pelas atividades de uma quadra esportiva repleta de crianças.

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Leia um trecho do primeiro capítulo do livro:

1. Newark Equatorial

O primeiro caso de poliomielite naquele verão foi registrado
no começo de junho, logo depois do Memorial Day, feriado
que marca o começo da estação, num bairro pobre de italianos do
outro lado da cidade. Ali onde morávamos, numa área do sudoeste
chamada Weequahic e ocupada por judeus, nada soubemos
sobre isso nem sobre os outros doze casos espalhados por quase
toda Newark e mais distantes da nossa vizinhança. Só por volta
do feriado de Quatro de Julho, quando quarenta ocorrências já
haviam sido registradas na cidade, apareceu na primeira página
do jornal vespertino um artigo intitulado “Autoridade médica
alerta os pais contra a poliomielite”, no qual o dr. William Kittell,
superintendente do Conselho de Saúde, orientava os pais a
observarem de perto seus filhos e a contatarem um médico se
qualquer criança apresentasse sintomas tais como dor de cabeça,
garganta inflamada, enjoo, pescoço enrijecido, dor nas
articulações ou febre. Embora reconhecesse que quarenta casos
eram mais que o dobro do número normalmente registrado
nos primórdios da estação de pólio, o dr. Kittell fazia questão de
deixar absolutamente claro que a cidade de 429 mil habitantes
de forma nenhuma estava sofrendo de algo que pudesse ser caracterizado
como uma epidemia da doença.

Naquele verão, comoem todos os outros, havia motivos de preocupação
e era necessáriotomar as precauções higiênicas de praxe, porém até
o momento não se justificava o tipo de alarme, “perfeitamente
compreensível”,que os pais haviam exibido vinte e oito anos antes,
durante o maior surto da doença — a epidemia de pólio de 1916
no nordeste dos Estados Unidos, quando ocorreram mais de 27
mil casos e 6 mil mortes. Em Newark, haviam sido observados
1360 casos e 363 mortes.

No entanto, mesmo num ano em que o número de ocorrências
se encontrava próximo à média e o risco de contrair a
poliomielite era muito menor do que em 1916, uma doença
capaz de causar paralisia, deixando uma criança aleijada para
sempre ou incapaz de respirar fora de um cilindro de metal
conhecido como pulmão de aço — isso quando a paralisia dos
músculos respiratórios não levava à morte —, era causa de
grande apreensão entre os pais em nossa vizinhança e prejudicava
a paz de espírito das crianças que estavam livres da escola
durante as férias de verão, podendo brincar do lado de fora o
dia todo e aproveitar as longas horas do crepúsculo. A preocupação
com as graves consequências de contrair uma forma séria
da doença era ainda maior por não existir nenhuma droga capaz
de combatê‑la e nenhuma vacina que criasse imunidade
contra ela. A poliomielite — ou paralisia infantil, como era
chamada quando se pensava que atingia principalmente crianças
bem pequenas — podia vitimar qualquer pessoa, sem nenhum
motivo aparente. Embora as crianças e os jovens de até
dezesseis anos fossem os mais vulneráveis, os adultos também
podiam ser seriamente infectados, como aconteceu com o então
presidente dos Estados Unidos.