Na semana passada os americanos comemoraram – ou lamentaram, dependendo da ideologia de cada
um – os 30 anos da histórica decisão da Suprema Corte dos Estados
Unidos garantindo às mulheres o direito à privacidade, o que incluía inclusive abortar um feto. A sentença dos juízes ficou conhecida como
“Roe x Wade” e até hoje divide o
país em duas tribos – ainda que
todos os institutos de pesquisas independentes mostrem que 68%
dos cidadãos concordem com este direito. Mesmo assim, depois de
três décadas de batalhas – algumas encarniçadas e sangrentas – grupos anti-aborto começam a vislumbrar oportunidades de vitória. Com
a maioria republicana eleita em
2002 para o Legislativo e com
um presidente francamente contrário à prerrogativa legal do controle individual de cada útero, existem chances de que o juízo de “Roe x
Wade” seja finalmente revertido.

Desde 1973, é claro, as opiniões mudaram muito no país. Que o diga a texana Norma McCorvey, 51 anos, a original “Jane Roe” (pseudônimo dado pela corte para garantir o anonimato da queixosa em Roe x Wade). Em 1995, ela deixou de ser a heroína dos movimentos de defesa do direito de aborto e se transformou em garota propaganda das hostes contrárias. A virada de casaca (motivada pela “descoberta de Cristo”, por conversão religiosa, ou por generosos subsídios de entidades conservadoras, dependendo de quem conta a história) foi, no mínimo, um choque para todos no campo de batalha. “Mudei ao saber que, desde meu caso na Suprema Corte até 1995, 31 milhões de fetos foram abortados no país”, disse McCorvey a ISTOÉ na quarta-feira, 22, data do 30º aniversário da decisão judicial. “Eu me casei aos 16 anos com um metalúrgico. Logo depois nos separamos. Tive dois filhos com homens diferentes e dei as crianças para adoção. Era conhecida das tavernas e bares de Dallas, onde bebia mais que qualquer um, fumava mais que qualquer um e tinha a boca mais suja do que qualquer um. Sexo para mim era encarado com displicência doentia”, confessou a ex-defensora do aborto. Aos 21 anos, ela engravidou novamente, e, através da advogada Sarah Weddington, encabeçou uma ação contra o Estado do Texas, que a proibia de abortar. O caso foi sendo catapultado através de apelos até a Suprema Corte, que finalmente bateu o martelo na questão.

Norma – que hoje comanda um bem desenhado website (www.roenomore.org) – é uma metamorfose ambulante. Em 1980, por exemplo, ela revelou sua verdadeira identidade e admitiu ser a Jane Roe no livro I am Roe. Os direitos autorais e conferências a sustentaram até os anos 90. Em meados daquela década, ela virou evangélica e renegou suas antigas posições. “Em 1995 eu abracei Cristo. Renunciei à direção
de marketing na entidade A Woman’s Choice – uma indústria de aborto
em Dallas – e fui para a igreja cristã HillCrest, onde o reverendo Flip Benham me batizou”, diz Norma. O final do século XX a encontraria novamente mudada: em 1998 foi batizada na Igreja Católica, onde, por enquanto, se mantém. Perguntada por ISTOÉ sobre os motivos de sua mudança de filosofia, ela respondeu: “Eu tive muitas noites de bebedeira. Tive muitas noites insones. Uma vez que você se dá conta do que está por trás da indústria do aborto, sua idéia começa a mudar. Eu vi os freezers de clínicas cheios de fetos.”

Para Kim Gandy, presidente da National Organization for Women, NOW (www.now.org), a maior associação pró-direito ao aborto no país, “a decisão de Norma McCorvey é de caráter absolutamente pessoal e
deve ser respeitada. Assim como outras decisões de caráter privado
de outras mulheres também devem ser respeitadas. Para isso, existe
um conjunto de leis que protegem a privacidade dos cidadãos deste
país. Estas leis fazem parte da Constituição dos Estados Unidos. A decisão da Suprema Corte no caso Roe x Wade foi motivada por uma ação popular, na qual Jane Roe era apenas uma das envolvidas. A conquista de 1973 não pertence a Norma McCorvey, mas a todos
os indivíduos deste país”, disse Gandy a ISTOÉ.

De todo modo, nunca esta suposta conquista esteve sob tamanha chuva de chumbo grosso. O medo das legiões pró-escolha – como são chamados os defensores do direito de aborto – é que o presidente George W. Bush continue indicando juízes conservadores para as cortes federais e a minoria democrata no Congresso não tenha força para vetar estes nomes. “A situação agora definitivamente vai mudar. Acho que George W. Bush será reeleito e no segundo mandato teremos a reversão de Roe x Wade”, diz Norma. Sua torcida, porém, pode ser inócua. A maioria dos juristas do país não acredita que se possa voltar no tempo. “Dois mil e três não pode apagar 1973; é impossível”, diz o professor doutor Lawrence Summer, presidente da Escola de Direito de Harvard. “Mesmo que a composição da Suprema Corte se torne menos equilibrada, com a indicação de mais um juiz conservador, ainda assim a decisão de Roe x Wade dificilmente será revertida”, diz Lawrence. É bom lembrar que mesmo no caso de um revertério jurídico, os avanços nas áreas de medicina podem tornar a questão irrelevante. “Com os contraceptivos
que temos hoje, somente os mais desinformados têm de enfrentar uma gravidez indesejada”, diz o doutor Martin Kruewich, especialista em reprodução humana. “Tanto que os índices de aborto no país caíram
11% desde 1995. Nos próximos anos, novas descobertas vão relegar
essa briga ideológica e jurídica aos compêndios de história e conversa
s de salão”, sentencia o médico.