Delfim diz que o PT é a verdadeira social-democracia,ressalta que há recursos para atacar a pobreza, masadverte que é preciso voltar a crescer

Por enquanto, o governo Lula é só elogios e escapa da língua afiada de Antônio Delfim Netto (PPB-SP), reeleito aos 74 anos para o seu quinto mandato de deputado federal. Um dos maiores críticos da política econômica de FHC, louvou a decisão do atual presidente de mobilizar a sociedade com seu projeto de combate à fome e apontou uma postura mais ousada de Lula no que se refere à presença do Brasil no cenário internacional. Para o poderoso ministro da Fazenda nos governos linha-dura dos generais Costa e Silva e Emílio Médici, o PT é a verdadeira social-democracia enquanto no PSDB essa concepção política existe só na sigla. Quanto ao conceito de direita e esquerda, é rápido no gatilho ao disparar que hoje as pessoas não sabem do que se trata, exceto se for sinal de trânsito. Ele não perde o humor, mesmo quando adverte que o País precisa voltar a crescer o mais rápido possível: “Foi uma grande sorte o Palocci (ministro da Fazenda) ter encontrado a Agenda Perdida.” Ele se refere a um estudo, coordenado pelo economista José Alexandre Scheinkman – que atuou na campanha de Ciro Gomes –, para pôr o País na rota do desenvolvimento com justiça social, que foi resgatado pela equipe de transição.

ISTOÉ – Como o sr. vê esta onda verde-e-amarela no País? Vai dar certo desta vez?
Antônio Delfim Netto

É patriotismo, não xenofobia, uma reação contra o estrangeiro. Essa onda diz que somos um país que provavelmente pode dar certo, se a gente achar que pode dar certo. Este é um fator importante no desenvolvimento econômico e social. A eleição do Lula ajudou a criar esse sentimento. No cenário internacional, Fernando Henrique prestou um serviço extraordinário para o País e Lula está se revelando à altura deste serviço. Lula está com um pouco mais de ousadia: o Brasil é um país que tem importância e é preciso que essa gente saiba que ele tem essa importância. Vejo com muita alegria essa recuperação da auto-estima. Lula colocou com extrema inteligência, na ordem do dia, a fome. Ele encontrou uma forma de interferir na agenda de todos. A fome é um problema universal.

ISTOÉ – É possível pôr fim à fome no Brasil?
Antônio Delfim Netto

Acho que sim. Não temos a fome africana. Os grandes programas começaram, por exemplo, quando se deu a aposentadoria rural no governo Médici. Este é, provavelmente, o maior programa de renda mínima que existe no mundo. Hoje, há recursos suficientes para atacar a pobreza junto àqueles que estão abaixo da linha da miséria. Agora, tudo isso exige desenvolvimento, crescimento. Não adianta somente a cesta básica. É preciso dar emprego. É isto que devolve a auto-estima. É evidente que este programa de combate à fome é um momento inicial até que se possa recuperar as condições de crescimento.

ISTOÉ – Como o sr. analisa o início do governo Lula nesta questão?
Antônio Delfim Netto

Começou bem. Lula separou claramente os alicerces da casa que ele vai construir. E eles são os mesmos de todo o governo no mundo hoje. Não existe governo que tenha uma idéia nova de que é possível gerar crescimento com inflação ou que acredite que déficit fiscal não é problema porque ele manobra com dívida pública. Houve uma mudança muito radical no próprio entendimento da economia. Mudou não só a teoria como a política econômica. Eu me divirto muito quando dizem que se está usando a tal política neoliberal. Meu Deus do céu! Equilíbrio fiscal não é neoliberal, nem direita nem esquerda. É uma necessidade, porque o Estado não produz recursos. O Estado tem que viver dentro das limitações do que ele arrecada da sociedade.

ISTOÉ – E não é pouco…
Antônio Delfim Netto

O Brasil já espolia a sociedade. O governo é um dos maiores consumidores de recursos que se tem conhecimento. A carga tributária bruta este ano foi de 37% (do PIB), mas em média é 35%. É a maior de qualquer país com renda de US$ 4 mil. Ela deveria ser de 22%, 23%. O Brasil não é a Belíndia, como dizia o Bacha (Edmar), que tem de um lado a Bélgica e de outro lado a Índia. O Brasil, da forma que cobra impostos, tem de um lado a Inglaterra e do outro, pelos serviços que presta, Gana. O Brasil é a Ingana. Ninguém pretende mais que se faça desenvolvimento com déficit ou que se possa ter uma taxa de câmbio fixa. Os economistas já descobriram que há uma contradição entre se ter a possibilidade de fazer uma política monetária independente e a liberdade de movimento de capitais com câmbio fixo.

ISTOÉ – Qual é a saída?
Antônio Delfim Netto

Os países têm um pouco de controle de capitais, mas é uma coisa modesta, porque é uma contingência. Suspender, por exemplo,
o movimento de capitais é muito mais custoso. O capital externo produz crise quando você usa, como nós usamos, inadvertidamente. Mas
ele também, em condições normais de temperatura e pressão, ajuda porque permite nivelar o consumo ao longo das flutuações da conjuntura. Não adianta se discutir o controle do câmbio desse ou daquele tipo.
Hoje, 70% dos países têm câmbio flexível e 100% sabem que
têm que ter equilíbrio fiscal.

ISTOÉ – Não há como se proteger das crises e dos ataques especulativos?
Antônio Delfim Netto

Você tem que usar o instrumento sabendo que ele tem dificuldades. O que não se podia é construir esta dependência externa. Teria que se ter dado ênfase à exportação. Não se poderia ter feito um déficit em contas correntes de US$ 180 bilhões. O problema não é a liberdade de movimento de capitais e, sim, a política econômica que foi posta em prática. Os primeiros quatro anos do presidente Fernando Henrique foram um desastre. O Brasil faliu, terminou em default, teve que correr ao FMI para obter um empréstimo de emergência e poder terminar o mandato e ganhar a eleição. Hoje se generaliza uma forma de controle inflacionário através de metas e o instrumento para isto é a taxa de juros de curto prazo. O Banco Central não é instrumento de fazer crescimento. Sua obrigação é manter a taxa de juros real igual à taxa de retorno real da economia. Qualquer outra coisa produz deflação ou inflação, mas não produz crescimento. Por que o mundo inteiro teve uma redução de inflação? A inflação não caiu no Brasil apenas.

ISTOÉ – Mas e o Plano Real?
Antônio Delfim Netto

Foi um plano brilhantíssimo, mas se inseriu num processo histórico de redução da inflação. Hoje só há três ou quatro países
com inflação maior do que 10% e infelizmente nós estamos de novo
no clube. Sobre esses fundamentos, Lula constrói a casa que quiser.
A de Fernando Henrique dava preferência ao setor financeiro e,
digamos, alguns biscoitinhos para o combate à pobreza. Isso para não ficar tão deselegante. Lula está querendo construir uma casa onde se combata a fome, amplie a saúde, a educação. As prioridades são diferentes, mas o alicerce é o mesmo.

ISTOÉ – Mas o PT não foi eleito para mudar?
Antônio Delfim Netto

Essa é a confusão. A mudança é exatamente na casa, não nos alicerces. Isso eu espero que continue. Na verdade, foi uma grande sorte o Palocci (ministro da Fazenda) ter encontrado a “Agenda Perdida” (risos). Há uma mudança importante na política e isso confirma aquilo que eu imaginava antes do primeiro turno: o PT tinha mudado.

ISTOÉ – O que o PT traz de novo?
Antônio Delfim Netto

O PT é um partido social-democrata como é o alemão, o Trabalhista inglês, o francês, o espanhol. Até 1988, era um corpo estranho na política nacional. Tinha rejeitado os princípios da Constituição, o mercado. Quando corrigiu seu programa, se qualificou e acabou se elegendo, o PT completou o ciclo democrático que estava implícito na Constituição de 1988. Esse é o papel novo que o PT exerceu e vai ter muita importância.

ISTOÉ – Se o PT é a verdadeira social-democracia, o que aconteceu com o PSDB, que nasceu com essa bandeira?
Antônio Delfim Netto

O PSDB é só papel. Não é possível uma social-democracia
sem uma base proletária. É um partido de intelectuais, um produto de acidente. Foi construído por políticos de altíssima categoria, mas eles
se separaram do PMDB porque o dr. Ulisses (Guimarães) forçou a mão.
O partido é só um nome. Quando Fernando Henrique foi convidado para ser ministro da Fazenda do Itamar (Franco) teve suas dificuldades. Mas ele sabia: se não fosse ministro, seria candidato a quê? A deputado
em São Paulo? Uma das suas maiores características foi ter reunido aquele grupo de economistas e bancado o Real, uma pequena jóia do ponto de vista da teoria econômica, que produziu um resultado extraordinário e o elegeu presidente. O PSDB assumiu outra dimensão
por conta do poder que foi puramente ao acaso. Se Fernando Henrique não tivesse a ousadia de fazer o Real, provavelmente os tucanos
teriam sido dizimados no processo eleitoral.

ISTOÉ – O sr. prega que o mercado é compatível com a liberdade, mas não é com a igualdade. Como sair dessa sinuca?
Antônio Delfim Netto

O mercado pode produzir uma sociedade muito eficiente do ponto de vista político. O homem hoje sabe que ele tem defeitos. Mas não há forma de organização da produção mais eficiente do que o mercado. Mas o mercado é a competição, a busca da inovação. O homem inteiramente livre quando opera no mercado não olha quem está do lado, pisa em quem está do lado…

ISTOÉ – Ele não diminui a desigualdade.
Antônio Delfim Netto

 Pelo contrário, porque os homens são naturalmente desiguais. Uns são mais ousados, uns têm mais histamina, outros menos; uns
têm uma concepção mais romântica, outros, menos. O mercado é
uma competição sanguínea e o altruísmo é totalmente deixado de lado. Por isso, a Igreja considera o liberalismo pecado, porque é um instrumento de separação dos homens. Uma sociedade razoavelmente justa tem que dar essas três condições: eficiência econômica, plena liberdade individual e redução da desigualdade.

ISTOÉ – Qual foi o maior erro de FHC?
Antônio Delfim Netto

 Além da política econômica, a reeleição pelos métodos que
foi feita. Ele prestou um mau serviço para a história deste país. Está reconstruindo as oligarquias. Um processo realmente lamentável de desaperfeiçoamento político. No longo prazo, o mal que a reeleição,
sem controle social, vai produzir é uma coisa muito séria. No interior, grupos se apropriam das tevês, compram jornais, rádios e monopolizam
a opinião. Nesta eleição, dizer que não foi usada a máquina é fazer
pouco da inteligência do brasileiro.

ISTOÉ – A política do toma-lá-dá-cá continua?
Antônio Delfim Netto

No Congresso, cada um, mesmo o mais pretensioso, vale como qualquer outro: um quinhentos e treze avos. Ninguém é mais do que seu próprio voto. São necessários negociação e acordos para aprovação de projetos críticos. O Congresso é quase uma representação do Brasil. O número de gordos da Nação não é igual ao número de gordos do Congresso. O número de vesgos também não. De qualquer jeito, eu represento as duas categorias (risos). Ninguém está lá gratuitamente, mas, sim, porque defendeu algumas idéias e conseguiu convencer os eleitores. O Congresso é lugar de composição. A idéia de que o PT vai impor seu programa é o maior equívoco do mundo. O programa do PT vai ser filtrado pelos programas do PMDB, do PFL, do PPB e de tantos outros. Ele só vai fazer o que for a intercessão desses conjuntos.

ISTOÉ – O PT vai negociar dessa forma seu programa?
Antônio Delfim Netto

O PT aprendeu isso ao ganhar prefeituras e governos de Estado. O partido tem 92 deputados e com seus aliados chega a 200, mas não é suficiente para implantar o seu programa. Para obter maioria precisa de outros votos. O que sai do Congresso é a combinação desses interesses, o que é absolutamente legítimo. Quanto à divisão do Poder Executivo, o PT usa a regra ‘do quem ganhou leva tudo, quem não ganhou fica de fora’. Aí eles perceberam que certos grupos só se movem se tiverem seus interesses lá representados.

ISTOÉ – Quais as maiores dificuldades que o governo Lula pode encontrar?
Antônio Delfim Netto

Temos que fazer as reformas. A da Previdência está bem escolhida, que seja a primeira. Existem caminhos para produzir uma boa reforma. O mundo mudou, a noção de emprego acabou. Essa idéia de que dou contribuição definida e recebo retribuição definida morreu.

ISTOÉ – E a reforma tributária?
Antônio Delfim Netto

É a mais importante. O sistema brasileiro é de custo pesado e reduz o crescimento. Temos um dos piores sistemas tributários do mundo e as distorções do sistema de preços relativos são gigantescas. Não tenho dúvidas de que existe, dentro desse processo, uma taxa de crescimento potencial, não realizada. Quando fizermos a reforma tributária, o País vai crescer de 0,5% a 1% a mais por ano simplesmente por causa do aumento da eficiência do setor público. Ela deveria ser a primeira de todas as reformas, mas não estamos preparados para ela.

ISTOÉ – O PPB vai marchar com o governo Lula?
Antônio Delfim Netto

O PPB tem um programa de economia social de mercado. O que vamos tentar fazer? Em cada um desses programas de reforma, tentar pôr o nosso pinguinho, porque somos de menos importância…

ISTOÉ – O sr. acredita na eficácia do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, para o qual o sr. foi convidado?
Antônio Delfim Netto

 É um fórum de discussão, não vai produzir projetos. A vantagem é tornar visível o debate. As divergências brutais entre os conselheiros vão aparecer. Quando o governo terminar o seu projeto e enviá-lo à votação, a sociedade inteira estará de fato informada das vantagens e das dificuldades. E cada um dos 513 deputados receberá orientação das suas bases. É preciso deixar claro que o poder do Executivo termina no Congresso. Por isso é que precisa compor.

ISTOÉ – E o governo está indo bem nesta missão?
Antônio Delfim Netto

Ele está repetindo tudo o que sempre se fez. Não se pode imaginar que o Executivo, em qualquer lugar do mundo, sendo o maior partido, permita que o Congresso se organize contra ele.