O maior desafio do governo Lula para implantar seus projetos de erradicação da miséria será o de enfrentar o “controle social” do tráfico sobre as favelas no Rio de Janeiro. O poder do estado paralelo não ameaça somente o Fome Zero, mas também a regularização de propriedades nos morros. Tirar adolescentes das ruas, amparar crianças em creches e matar a fome dos moradores dos locais dominados pelo crime no Rio, tudo esbarra na muralha quase impenetrável do narcotráfico. ONGs como a Cruzada do Menor e o Centro Integrado de Ação e Desenvolvimento Social (Ciads), que atendem jovens carentes, estão proibidas de funcionar dentro de comunidades. Para entrar nesses territórios, é preciso ter o aval de associações de moradores, muitas ligadas aos traficantes. Há algumas semanas, uma grande multinacional teve de parar um projeto de doação de alimentos a um morro na zona norte do Rio. Recebeu uma ordem direta de traficantes: a entrega de comida tinha de parar. A empresa – cujo nome foi omitido por segurança – se retirou e o projeto foi cancelado.

“Para manter o comando, o tráfico controla a entrada da sociedade do asfalto em seu gueto”, afirma Marina Maggessi, coordenadora da Inteligência da Polícia Civil do Rio, antevendo dificuldades para a regularização de propriedades nas favelas. A polêmica proposta do Ministério da Justiça de delegar para as associações de moradores a distribuição de certificados de posse pode ser um tiro pela culatra. É que pelo menos 400 dessas associações sofrem influência do tráfico, segundo levantamento da Assembléia Legislativa. “As favelas vão ser loteadas pelo tráfico”, sentencia Marina. O controle hoje é tão grande que, segundo a polícia, a Telemar, operadora de telefonia fixa que atua no Rio, só consegue realizar serviços nas favelas subcontratando empresas que usam moradores. “É a precaução do tráfico para evitar o grampo dos telefones. Eles fazem o mesmo com funcionários da Light, carteiros, garis e qualquer serviço externo”, conta a inspetora. Embora tragam recursos e prestígio para muitas comunidades, projetos que atendem crianças e adolescentes roubam a mão-de-obra do tráfico. “Tráfico é poder. O business não pode ser ameaçado”, explica Rubem César Fernandes, coordenador da ONG Viva Rio.

Fincada em Del Castilho, no “asfalto” da zona norte, a Cruzada do Menor, que atende a 900 crianças e idosos de favelas do Rio, segue um dogma: não abre mais escritórios dentro de comunidades dominadas pelo tráfico. A Cruzada tem motivos para se sentir escaldada. Já foi expulsa duas vezes de favelas. Primeiro da Cidade de Deus, zona oeste, onde colaborava com uma creche, e depois, do Complexo do Pavão-Pavãozinho, em Copacabana, zona sul, onde ensinava marcenaria, capoeira e hotelaria a meninos de rua. Em ambos os casos, recebeu um aviso de traficantes armados: “A comunidade somos nós.” No Pavãozinho, traficantes invadiram o local
com cães, agrediram os adolescentes e disseram que quem voltasse
no dia seguinte seria castigado. A casa foi fechada. “Para ficar dentro dessas comunidades, é preciso aceitar certas regras do jogo que nossa formação não admite”, explica Belmiro Nunes, superintendente-geral
da Cruzada do Menor. Em outro bairro da zona norte, no Jardim América, o Ciads luta diariamente contra a violência para ensinar capoeira,
futebol e dança para mais de mil jovens de comunidades carentes.
Há alguns meses, a entidade, que estava instalada dentro da favela
do Dique, ao lado de Vigário Geral, recebeu de líderes locais duas
opções: deixar a comunidade ou permitir que as “lideranças locais” assumissem. Preferiu sair. “Nem sempre é preciso apontar uma arma
para expulsar alguém”, ensina Ângelo da Silva, coordenador do Ciads. “Bater de frente com o tráfico é loucura. Se o poder público não consegue entrar lá, imagine a gente”, diz.

O falso assistencialismo dos traficantes cria em seus territórios a cumplicidade pelo terror. Embora não proíba todos os projetos sociais, o poder paralelo mantém um controle sobre cada programa, como uma concessão que pode ser cassada a qualquer instante. De olho nesse cenário, escritórios como a MPP – Management de Projetos e Processos, gerenciadora de projetos sociais para empresas e ONGs no Rio, já dedicam estudos ao “fator tráfico”. O conselho é claro: pesquisar bem a que comunidade destinar recursos e nunca negociar com traficantes ou com seus intermediários. “Qualquer empresa ou organização deve identificar os fatores que podem constituir risco para o êxito do projeto. Se o tráfico de drogas em uma determinada área significar risco alto, o projeto não deve ser realizado”, afirma a socióloga Cláudia Pfeiffer, da MPP. Empresas tendem a escolher áreas onde o tráfico convive melhor com projetos sociais externos, como a Mangueira, onde há cinco anos funciona uma malha de programas em parceria com empresas privadas – como a Vila Olímpica, montada com o apoio financeiro da Xerox do Brasil. Enquanto isso, a população de morros em conflito, como a Vila Cruzeiro, está cada vez mais isolada. A favela fica no Morro do Alemão, zona norte, onde os investimentos sociais estão vetados pelos consultores de empresas.

A tentativa de romper o bloqueio imposto pelos traficantes gerou há uma semana um encontro inesperado. Coordenador político da Igreja Universal, o deputado Bispo Rodrigues (PL-RJ) encontrou-se em Brasília com Frei Betto, consultor pessoal do presidente Lula. Na pauta: como levar o Fome Zero a comunidades tomadas pela violência. “Em certos lugares no Rio, onde falta o poder público, as entidades religiosas têm mais chance de entrar”, acredita o Bispo Rodrigues, que propõe um pacto entre pastorais católicas e grupos evangélicos. Com persistência, muitos projetos conquistam o respeito da comunidade e, se não são intocáveis, conseguem transitar em áreas controladas pelo tráfico.

“Fazemos nosso trabalho social em qualquer comunidade, independentemente da facção do tráfico que comanda”, afirma José Pereira de Oliveira Júnior, coordenador do AfroReggae, ONG instalada na favela de Vigário Geral, zona norte, e que conquista com sua música cerca de 600 crianças e adolescentes de “áreas de risco”. O sucesso do AfroReggae pode ser explicado por sua origem, após uma chacina de 21 moradores, em 29 de agosto de 1993. “É preciso entender as regras, concordando ou não, para conquistar a confiança”, explica José Júnior. E quais são essas regras? “Na favela, o poder paralelo é o do governo e o poder oficial é o do tráfico”, resume.