Há muito tempo o verão não comungava com um sucesso tão apropriado ao espírito de paquera desenfreada reinante na estação. Trazendo refrão malicioso e grudento, Já sei namorar, do álbum Tribalistas – projeto coletivo que reúne Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown –, vem pautando o comportamento geral, principalmente dos jovens que adoram conjugar o verbo ficar. Nas festas, pistas de dança ou barracas de praia, a cena é comum. Basta ouvir o primeiro “Uh, uh, uh” do roquinho matreiro para todos começarem a gritar a plenos pulmões: “Eu sou de ninguém/eu sou de todo mundo/e todo mundo é meu também.” Música mais executada em todo o País, Já sei namorar catapultou as vendas do CD Tribalistas. Lançado no início de novembro, hoje está na casa dos 600 mil discos vendidos, prodígio alcançado por poucos artistas nacionais nestes tempos de pirataria e vacas magras. Hari Chandra, gerente de marketing da gravadora EMI, que lançou o trabalho juntamente com o selo Phonomotor Records, de Marisa Monte, comemora o feito. “As vendagens superaram todas as expectativas. Quando ouvimos o material, percebemos que era muito bom e tinha tudo para acontecer. Mas não dessa forma e com essa rapidez. Projetávamos uma venda de 400 mil CDs para meados de 2003, cifra que ele atingiu em pouco mais de um mês.”

Coincidência ou não, o sucesso deve ter surpreendido os próprios tribalistas, que desenvolveram o projeto com todo o sigilo
em abril de 2002, período de férias de suas carreiras individuais, e não planejaram nenhuma campanha promocional – o que não deixa de
ser uma forma de marketing despistado. Resta saber se eles vão cumprir o trato diante do fenômeno que se tornou o encontro aparentemente sem compromisso. O combinado
é que não haveria shows nem aparições em programas de tevê, muito menos entrevistas para a imprensa. O pacto diz que, se falarem, tem
que ser os três juntos e ao vivo. Como Marisa mora no Rio de Janeiro, Antunes em São Paulo e Brown em Salvador e cada um tem sua agenda de compromissos, a conclusão é que não querem falar. Propósito claro
da faixa-manifesto: “Tribalismo é um antimovimento/que vai se desintegrar no próximo momento”, anunciam.

Co-produtor do disco junto com Marisa, o paulistano Alê Siqueira garante que não havia nenhuma preocupação mercadológica durante a produção do álbum. “O sucesso veio de forma espontânea. O disco é verdadeiro, um encontro bacana, e o público percebeu.” Ele lembra que Já sei namorar correu o risco de sair da seleção de 13 faixas. Tudo porque Carlinhos Brown não estava satisfeito com a sonoridade da canção, calcada em violões e muito jovem guarda para seu gosto. “Ainda não
foi gol”, era o bordão usado por ele nestas ocasiões. “A música não
tinha essa cara até o final da gravação, quando o Brown sugeriu a introdução de beats mais eletrônicos”, lembra Siqueira. Podá-la seria
um daqueles equívocos imperdoáveis, pois mesmo quem não é do ramo, como o artista plástico Vik Muniz, sacou de cara o futuro tilintante
da canção ao ouvi-la pela primeira vez, ainda num CD-R, em julho do
ano passado, quando preparava a capa do disco. “Escutei indo para
um sítio e vi que tinha um apelo contagiante. Gosto muito da idéia popular e da acessibilidade do disco”, afirma Muniz, que, antes de
se decidir pela foto da capa trabalhada com chocolate, sua marca registrada, tentou outros artifícios, como aplicar cordas de guitarra
nas fotografias. Radicado em Nova York, ele ficou felicíssimo ao saber
que seu trabalho de vanguarda chegou até as barracas dos camelôs. “Artista quer ser visto. Isso não me incomoda”, diz.

O fato é que ser tribalista virou moda. E tribalista, diz o hino do grupo, abusa de colírio e de óculos escuros. Em Salvador, a turma jovem já está usando óculos de sol de ponta-cabeça, como faz Carlinhos Brown no DVD do disco, argumentando que assim “dá design”. A mania está chegando a São Paulo. Mas, diferentemente do que imaginam os fãs, a idéia dos óculos escuros durante as gravações não veio de Brown, mas do violonista baiano Cezar Mendes, 52 anos – co-autor da bela valsa Carnalismo e da bossa Pecado é lhe deixar de molho. Ele é um dos músicos convidados para o projeto, ao lado do multiinstrumentista Dadi, 50 anos, ex-integrante do grupo A Cor do Som e inspirador da música Leãozinho, de Caetano Veloso. Como é tímido e não suporta a presença de câmeras, Mendes levou uma coleção de óculos para o estúdio carioca de Marisa Monte, na Gávea, onde foi gravado o CD. “O Arnaldo, que não gosta de óculos, foi o primeiro da turma a usar. Emprestei para ele o metálico, que rodou na cara de todos”, conta Mendes.

Baiano de Santo Amaro da Purificação e idealizador do premiado Diplomacia, disco em homenagem ao sambista baiano Batatinha, inocentemente Mendes desmistifica o apregoado improviso de Tribalistas, vendido como um produto caseiro, fruto de dois dias de ensaios e 13 dias de gravação. Na verdade, Mendes, Dadi e Marisa passaram quase um ano se encontrando e burilando as músicas no violão, a grande base do CD. “Eles disseram aquilo só de charme. O disco foi antes muito bem pensado. Entramos no estúdio com os violões superensaiados. Dava para tocar até de olhos fechados.” Outro lance foi o clima fértil das gravações. “Eram cinco pessoas sem um pingo de vaidade. Se uma coisa não dava certo, gritava-se ‘tira isso’ e era uma gargalhada geral. Mas quando os cinco olhavam para a cara de um e de outro e dizia ‘OK’, era real.”

Exercício – Mais conhecido como baixista, Dadi pôde se exercitar numa série de outros instrumentos – violão, guitarra slide, piano, órgão Hammond, acordeão. “Quem me liberou para isto foram eles e aquele clima de tocar em casa. Acreditei e fiz.” Co-autora do rock Passe em casa, a cantora baiana Margareth Menezes, que na faixa também participa dos vocais e do violão, confirma o alto-astral das gravações. “É muito interessante vê-los trabalhando. Eles são muito rápidos, é difícil achar parcerias assim, em que as coisas vão se casando naturalmente.” Foi Margareth que cunhou com Marisa versos como “Se você não passa no morro/Eu quase morro”, tipo de construção que irrita bastante os detratores do trio. E se existe um disco que vem dividindo opiniões, ele é Tribalistas. Apesar de eleito o melhor álbum do ano pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), o trabalho tem sido alvo de piadas, veiculadas especialmente na internet.

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A mais divertida é a criada pela publicitária santista Daniela Abade, 31 anos, autora de um hilariante gerador de letras tribalistas, que pode ser acessado no endereço https://mundo perfeito. terra.com.br/geraletra. htm. O deboche começa na apresentação, que diz: “Se eles podem, você também pode. Eis aqui a forma mais fácil de ganhar dinheiro e pagar de intelectual.” A seguir, o internauta preenche 13 quadros com “verbos bestas”, “verbos em inglês” e “nomes de cidades” e consegue criar letras absurdas com os títulos do tipo Tchererêkundu, Menos e mais e Todo mundo no mundo. “Minha intenção foi mostrar como é fácil fazer letras como aquelas, basta usar algumas aliterações e pronto”, diz Daniela. No pico da novidade, o site chegou a receber 300 visitas por hora. Outra brincadeira alastrada como praga pela rede foi o texto humorístico do jornalista paraense Vladimir Cunha. Ele
imaginou o primeiro aniversário de Mano Wladimir, recém-nascido
filho de Marisa com o guitarrista Pedro Wladimir Bernardes, 19 anos,
para satirizar as atitudes tribalistas.

Quem se deliciou com a engenhoca digital bolada por Daniela foi o engenheiro paulistano Marco Aurélio Góes dos Santos, 28 anos, que não só criou uma letra como fez uma música e um videoclipe tribalista, usando óculos escuros, obviamente. O resultado pode ser conferido na sua página, www. jesusmechicoteia.com. “Não gosto de nada naquele CD. É pretensioso, bobo, com letras sem sentido, que não dizem nada.” Autor das versões das músicas para o inglês, o cantor e compositor brasileiro de origem americana, Arto Lindsay, naturalmente não compartilha da mesma opinião. “A Marisa faz melodias lindas, é popular no bom sentido, gosta de cair na boca do povo. Já o Arnaldo e o Brown são capazes de criar expressões-relâmpago. Juntos, chegam a músicas redondas.” O produtor Alê Siqueira, responsável pelo sofisticado acabamento do CD, vai mais longe e classifica o disco de amador, no sentido de quem ama o que se faz. “A química dos três não se dá pela semelhança, mas pela complementaridade”, explica. “O Brown passa uma imagem barroca, mas é ultracosmopolita. O Arnaldo é urbano e totalmente Xingu. E a Marisa traz escondido um forte lado bucólico. É nestes paradoxos que as poéticas deles tangenciam.” Eis aí uma bela análise para os que ainda não entenderam o que é ser tribalista.


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