A crise de legitimidade que dilacera o Estado argentino parece não ter fim e, como uma metástase, vai se espalhando por todos os poros do poder. Depois de atingir duramente o Executivo e o Legislativo, chegou a vez de o Judiciário ficar na berlinda: sua mais alta instância, a Corte Suprema de Justiça, está sob investigação do Congresso. Os nove juízes que compõem o tribunal estão sendo questionados pela Comissão de Julgamento Político, formada por 31 deputados, e podem ser destituídos. Em toda história argentina, esta é a segunda vez que a Corte é colocada sob suspeição. A outra foi em 1947, quando o então presidente, general Juan Domingo Perón, simplesmente afastou os juízes. Entre as acusações que recaem sobre a instituição destaca-se a de negligência em centenas de casos recentes, alguns os mais escandalosos do país, como o atentado à embaixada de Israel e o contrabando de armas para a Croácia e o Equador, ambos ocorridos durante o governo do presidente Carlos Menem (1989-1999). São 32 petições contra os juízes, mas a maior parte das denúncias recai sobre os cinco magistrados nomeados por Menem: o presidente da Corte, Julio Nazareno, o vice, Eduardo Moline O’Connor, Guillermo López, Antonio Boggiano e Adolfo Vázquez. “A Corte Suprema não é um órgão independente e por isso está sendo julgada”, acusa o peronista Sérgio Azevedo, presidente da comissão.

“Tudo não passa de um jogo político. A Corte Suprema é a única instituição da Argentina que ainda tem credibilidade”, disse a ISTOÉ Lucio Gregorio Baldeni, advogado de três juízes. Ele alega que o tribunal está sendo perseguido politicamente por ter derrubado o corralito (curralzinho, o congelamento dos depósitos bancários decretado pelo ex-presidente Fernando de La Rúa). Segundo Baldeni, o processo contra a Corte Suprema é “inconstitucional” e até a própria Comissão de Direitos Humanos da ONU enviou um comunicado em 19 de fevereiro alertando sobre o fato. Baldeni não sabe dizer quais são as chances de os juízes continuarem em seus cargos. Mas, caso eles sejam destituídos, avalia, haverá uma profunda crise em todo o sistema judiciário argentino. “Como ficarão os juízes subalternos à Corte?”, indaga o advogado. “E, se forem destituídos, serão substituídos por homens de confiança do governo.”

Ceticismo – É fato que a população argentina está descontente com o Judiciário e que talvez esse poder precise mesmo ser reformado. Mas também é fato que o descontentamento é maior ainda com a elite política e que a insatisfação volta a cercar a Casa Rosada (sede do governo). Na sexta-feira 1º, o presidente Eduardo Duhalde completou dois meses de governo e já acumulava uma impopularidade digna do ex-presidente Fernando de La Rúa. Uma pesquisa da consultoria Rouvier & Associados revelou que apenas 18,8% dos argentinos o apóiam, enquanto 50,4% estão céticos quanto à liderança política em geral. Ao mesmo tempo, a população continua a protestar batendo panelas em frente ao Congresso e a hostilizar políticos. “O povo não confia nos políticos, nem em seus representantes, nem se senti interpretado por suas lideranças sindicais e empresesariais e também desconfia da justiça”, admitiu o próprio Duhalde em mensagem ao Congresso na sexta-feira 1º.

Apesar dos baixos índices de aprovação, o presidente ainda é apontado como a melhor alternativa para governar a Argentina. Duhalde foi eleito pelo Congresso Nacional e tomou posse em janeiro deste ano, substituindo o também peronista Adolfo Rodríguez Saá, que havia assumido no lugar De La Rúa, cuja renúncia aconteceu em 20 de dezembro do ano passado em meio à maior convulsão social e política dos últimos anos na Argentina. Os opositores, como o ex-presidente Carlos Menem, insistem em convocar eleições presidenciais o mais rápido possível. Mas Duhalde diz que não vai renunciar: “Vou ser presidente até 10 de dezembro de 2003. Toda essa discussão que tenta pôr em dúvida minha legitimidade não tem razão de ser. Não vou, de nenhuma maneira, abandonar a Argentina neste momento”, garante. Mesmo assim, setores ligados à Casa Rosada já admitem a idéia de realizar um plebiscito para legitimar o governo. A proposta foi sugerida pelo assessor privado de Duhalde, José Pampurro. Para ele, “se a legitimidade do presidente continuar sendo questionada por setores que pretendem derrubá-lo, não teremos outra alternativa a não ser convocar um plebiscito”.

Além da crise política, as inquietações mais imediatas da Casa Rosada giravam em torno das negociações entre o governo federal e as províncias sobre o repasse de impostos. Na quarta-feira 27, finalmente, chegou-se a um acordo sobre o repasse tributário nacional pelo qual a União ficará com 44% do total da arrecadação e as províncias dividirão os restantes 56%. Também ficou estabelecido que o governo federal irá refinanciar as dívidas das províncias que se comprometeram a reduzir seus déficits fiscais em 60%. “É um acerto que poderá ser cumprido. Não será como das outras vezes que se prometia e depois não era possível concretizar”, afirmou o ministro da Economia, Jorge Remes Lenicov. Uma nova equipe do Fundo Monetário Internacional (FMI) deve chegar a Buenos Aires na próxima semana. Antes do acerto com as províncias, a Casa Rosada vociferou contra a instituição. “O governo não pode ficar seis meses esperando que os técnicos do Fundo analisem os números”, afirmou Duhalde. A declaração provocou divergência entre o presidente e Lenicov. “Duhalde não está colaborando. É preciso que ele deixe de criticar os banqueiros e as empresas privadas”, disse o ministro da Economia.

O vice-ministro da Economia, Jorge Todesca, também havia declarado que não há caixa para financiar os gastos públicos e que a arrecadação do governo em fevereiro se deu em um “ritmo muito lento”. O desemprego está em 22% e poderá chegar a 30% ainda neste semestre. A inflação ameaça voltar e o presidente do Banco Central, Mario Blejer, cogitou da possibilidade de dolarização, hipótese que ele se apressou em desmentir. Como se tudo isso não bastasse, a Argentina ainda viveu na semana passada boatos de um golpe militar. Os rumores foram desmentidos pelo ministro da Defesa, Horacio Jaunarena. “De nenhuma maneira existe a possibilidade de um golpe”, garantiu. “Não há pensamento mágico. Existe a expectativa de alguns de que um profeta venha solucionar os problemas argentinos. Mas temos que assumir a realidade e trabalhar em conjunto para que eles sejam solucionados.” Difícil é supor que os argentinos acreditem mesmo em mágicos e muito menos que Duhalde seja um deles.

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