A médica Wanda Corrêa alerta para os riscos da banalização da cirurgia plástica e critica colegas que ajudam a criar falsas expectativas

Na medicina, o corporativismo é um bloqueio tão forte que já foi comparado por um antigo membro da Academia Nacional de Medicina a uma barreira de arame farpado e eletrificado. Mas, apesar do silêncio de muitos médicos diante de cirurgias que resultam em mortes de pacientes ou em deformações, a cirurgiã plástica Wanda Elizabeth Corrêa, 49 anos, resolveu falar e fazer um desabafo em defesa da ética profissional. Ela representa a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica no Comitê Europeu de Fiscalização do Uso de Substâncias em Cirurgias e prega a preservação do juramento de Hipócrates, o pai da Medicina, segundo
o qual os médicos devem se comprometer com o ser humano.
“Basta de cirurgias de terror, como estas realizadas por Denísio Marcelo Caron”, diz, indignada. Wanda se refere ao médico acusado de ter provocado a morte de cinco pacientes que o procuraram na ilusão de saírem de seu consultório com formas mais perfeitas e harmoniosas.
Há três semanas, Caron chegou a ser preso, mas, depois, acabou em liberdade. Embora não seja especialista em cirurgia plástica, ele comandava um consultório na cidade-satélite de Taguatinga, em
Brasília, onde realizava as operações.

Destacada discípula do cirurgião Ivo Pitanguy, Wanda defende o fim do corporativismo na profissão, até para evitar que casos como o de Caron permaneçam encobertos e sejam discutidos somente entre os especialistas. “O mínimo que o médico tem de fazer é defender os seus princípios fundamentais, e não o colega que deixa de cumprir as normas básicas da profissão”, afirma. Para ela, o caso Caron deve também servir de alerta para uma reflexão contra a banalização da cirurgia plástica no Brasil. A médica garante que os estragos provocados por Caron resultaram inclusive em uma forte e má repercussão no Exterior. Na opinião de Wanda, o ocorrido deve justificar uma fiscalização mais rígida de procedimentos e cuidados dos clientes na hora de escolher o cirurgião plástico. A médica vai além. Nesta entrevista a ISTOÉ, ela denuncia o uso em cirurgias de substâncias ainda não autorizadas legalmente, como o metacrilato, usado para anular ou disfarçar rugas, e o silicone líquido. Wanda também não poupa os pacientes. “Se de um lado há profissionais que prometem resultados miraculosos, de outro existem mulheres de 50 anos que não querem ser trocadas pelo marido por duas de 25 e recorrem à plástica como se ela fosse uma mágica”, afirma.

ISTOÉ – Qual foi sua reação diante do caso do médico Marcelo Caron?
Wanda

De perplexidade e de tristeza. Nós temos de levar mais a sério a vida humana, em todos os segmentos. É preciso uma reflexão sobre episódios como os que envolvem este médico. Eles deveriam ser analisados em faculdades de medicina, mas especialmente em cursos de cirurgia plástica.

ISTOÉ – Há muitas cirurgias plásticas feitas sem ética?
Wanda

Sim. Há profissionais que não estão trabalhando com ética e de acordo com os critérios técnicos fundamentais. Não podemos omitir isso e praticar um corporativismo que em nada serviria aos que podem até não ter os resultados esperados, mas que exercem a profissão dignamente.

ISTOÉ – Como repercutem na sociedade estes procedimentos antiéticos?
Wanda

Há um comprometimento da imagem do médico, sem dúvida. Há pessoas que já desistiram de fazer certos tipos de cirurgias, inclusive lipoaspiração, mesmo considerando-se que são feitas quase 100 mil cirurgias deste tipo por ano no Brasil, a maioria com resultados positivos. O problema é que há pessoas fazendo esta operação de operação em consultórios sem condições para isso. Durante um procedimento cirúrgico, pode até ocorrer uma perfuração da parede abdominal, por exemplo, mas não pode ser frequente.

ISTOÉ – Há uma oferta exagerada de cirurgias plásticas?
Wanda

Aí é que está o problema. Há uma banalização da cirurgia plástica. Há pessoas que oferecem a operação até em sorteios, nas ruas. Há todo tipo de coisa: promoção, pagamento em dez vezes, como se fosse uma feira de variedades.

ISTOÉ – A cirurgia às vezes é apresentada como uma ilusão?
Wanda

Há marketing feito por publicações de beleza, coisas de toda ordem. Há também aquele profissional que procura ganhar dinheiro rápido e fácil. Só atende plano de saúde e, de repente, quer dar um salto mágico para a riqueza, enchendo o consultório com todo tipo de coisa. Faz a lipo por etapas, em suaves prestações: um quarto do abdome em um dia, outra parte em outro. Faz um dia pelo preço da consulta, outro por uma nova parcela, enfim, banaliza a cirurgia.

ISTOÉ – Até que ponto essa banalização afeta o conceito dos profissionais?
Wanda

Acaba nos preocupando. Tenho recebido e-mails de colegas da Europa apreensivos com o que acontece no Brasil, como a festa do botox (produto utilizado para amenizar vincos e rugas), lipo por etapas, enfim, coisas em que o procedimento cirúrgico parece que é o que menos importa. Estes episódios causam danos à imagem da cirurgia plástica brasileira, já procurada por personalidades importantes que confiaram em nossos profissionais.

ISTOÉ – Aumentou o número de processos contra cirurgiões?
Wanda

Sim. Há processos por maus resultados, outros por perfuração sem a morte do paciente e de perfurações com óbito. O caso do Marcelo Caron não é o único. É o pior deles. Eu ainda não tinha visto nada igual. Este é um caso de terror. É preciso haver ética e pleno respeito aos verdadeiros procedimentos cirúrgicos em qualquer situação. Uma coisa é uma perfuração ou um outro acidente quando o médico comprovadamente obedece os critérios fundamentais. Outra situação muito diferente é quando estes procedimentos, repito, fundamentais, não são observados. O cliente, é óbvio, tem de ser respeitado como um ser humano. O médico tem sempre de fazer o melhor, e rigorosamente de acordo com os critérios da medicina.

ISTOÉ – O diagnóstico de um acidente pode ser feito já durante a cirurgia?
Wanda

O diagnóstico de um acidente de uma perfuração, por exemplo, dificilmente é feito na mesma hora da cirurgia. É feito horas depois ou no dia seguinte, e aí a situação é grave. Pode haver então uma infecção generalizada, com óbito. Os casos que conheço, ocorridos no Rio, foram de pessoas que morreram de infecção generalizada, em hospitais públicos e particulares.

ISTOÉ – Em hospitais públicos os casos em que falta atendimento correto são mais comuns?
Wanda

Nem tanto, porque nos hospitais públicos não costumam ser realizadas cirurgias estéticas.

ISTOÉ – Quem é o maior responsável por essa banalização da cirurgia plástica: médico ou paciente?
Wanda

Além de muitos médicos facilitarem e se esquecerem dos procedimentos essenciais, há pacientes procurando desesperadamente a mágica e não a cirurgia. Cresceu muito o número de mulheres e também o de homens que pretendem fazer a cirurgia. Eles perderam a timidez pela estética. Parece que a chamada vida moderna criou uma sociedade que exige um corpinho perfeito e as pessoas, principalmente na busca de um status maior, tentam melhorar rapidamente a estética ou têm uma ânsia pelo rejuvenescimento. Querem se apresentar em uma festa com uma imagem mais jovem, exibir na praia o corpo sem os pneuzinhos, turbinar os seios. E há o uso de substâncias não autorizadas legalmente, como o metacrilato, para amenizar rugas, e o silicone líquido. E, às vezes, os procedimentos são chamados de pequeno porte, mas na verdade não são. Para a realização de uma lipoaspiração, por exemplo, pode ser usada anestesia local, com uma quantidade muito grande de anestésicos e de risco.

ISTOÉ – Muitas vezes a cirurgia plástica é uma tentativa de mudar a própria vida?
Wanda

Acontecem casos de pessoas que pretendem mudar sua vida, buscar uma ascensão social, uma melhoria da sua posição profissional,
e outras que pretendem resgatar o casamento. Há mulheres que tentam melhorar a auto-estima e algumas pensam em salvar o casamento. É aquela história de ter 50 anos e temer ser trocada por duas de 25. Há ainda aquelas que pretendem compensar uma eventual substituição por uma mulher mais jovem porque não são valorizadas pela maturidade, pela vivência, por sua riqueza humana e por sua própria estética. Há também homens que não estão satisfeitos com sua idade ou que pretendem atrasar o relógio do tempo.

ISTOÉ – Os médicos exploram a ilusão de uma transformação radical?
Wanda

Há certos médicos que entram na ilusão do paciente, que encara a cirurgia plástica como se fosse uma verdadeira mágica ou uma maquiagem permanente. Estes profissionais alimentam a fantasia do paciente e admitem uma mentirinha. É um jogo de vantagens, em que o médico faz concessões e o paciente também quer ser enganado, quer o sonho, a fantasia, e o profissional viaja junto. Depois, o paciente culpa a cirurgia plástica, em vez de culpar os maus profissionais. Mas é claro que há cirurgias perfeitamente válidas, principalmente quando a pessoa tem consciência de que não será usada nenhum tipo de máquina do tempo. Infelizmente, é impossível uma pessoa de 50 anos voltar aos 30.

ISTOÉ – Quais os cuidados que as pessoas devem adotar quando procuram um cirurgião plástico?
Wanda

Em primeiro lugar, deve-se procurar o profissional no qual se tenha confiança ou que possua resultados confiáveis. Deve-se ver ainda se o médico é credenciado na Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP). Além disso, é possível avaliar o atendimento pela atitude do próprio médico escolhido, que deve pedir exames pré-operatórios, que são os mesmos destinados a qualquer outra cirurgia. É preciso observar ainda o tipo de clínica que ele está indicando. Este estabelecimento deve ser reconhecidamente bem equipado. Não se pode fazer cirurgia em um consultório.

ISTOÉ – Mas já não houve problemas também com médicos credenciados pela SBCP?
Wanda

Claro. Mas a SBCP é uma referência. Para participar dela o profissional tem de demonstrar sua capacidade em provas. Muitos aprovados não cumprem os fundamentos éticos, assim como profissionais fora da medicina também são aprovados em exames e decepcionam. Mas é melhor levar em conta o credenciamento pela SBCP. Maus profissionais existem em todas as áreas. Por isso, é preciso sempre colocar barreiras. Quando há realmente o erro médico e a ética profissional não é respeitada, o profissional tem de ser punido. A sociedade está se mobilizando para evitar que se repitam casos como o que envolve o médico Marcelo Caron.

ISTOÉ – Como combater os médicos que descumprem os fundamentos básicos da cirurgia?
Wanda

É difícil impedir que isso ocorra em todo o Brasil, mas há uma ação de profissionais em câmaras técnicas de conselhos regionais de medicina para evitar que este problema persista ou pelo menos que seja frequente. Espero que o corporativismo perca a batalha para a consciência profissional. Mas ainda é preciso um esforço maior e mais intenso neste sentido.

ISTOÉ – Em que região do país há mais maus profissionais?
Wanda

No Rio de Janeiro, há muito mais demonstrações da banalização da cirurgia plástica do que em São Paulo, Brasília e Minas, isso para
falar apenas nestes três centros. Mas já aconteceram problemas também no Sul.

ISTOÉ – Os casos de mortes em cirurgias começam a causar prejuízos morais e materiais?
Wanda

A cirurgia plástica brasileira é um segmento da medicina que alcançou projeção internacional, mas os episódios deprimentes que ocorreram já causam muito desgaste. No passado muitos profissionais do chamado Primeiro Mundo vieram ao Brasil aprender as técnicas da cirurgia plástica brasileira, principalmente em razão da credibilidade de Ivo Pitanguy. Mas agora estamos sofrendo um desgaste. Vários profissionais vieram para o Rio de Janeiro e aprenderam português para conviver com nossos cirurgiões. Mas justamente no Rio é que a cirurgia plástica brasileira sofre reveses com esta feira de variedades em que a cirurgia é oferecida às vezes até em pacotes.