Há cerca de 17,6 milhões de analfabetos no Brasil, quase 13% da população. Para combater esse monstro, o simpático aprendiz de bruxo com óculos arredondados e um raio na testa tem caprichado nos feitiços. Desde que Harry Potter estacionou sua vassoura por aqui há alguns anos, uma verdadeira revolução acontece na produção editorial voltada para crianças. Entre 2001 e 2002, houve um crescimento de quase 300% no número de exemplares vendidos. Pela primeira vez, textos de literatura infantil foram introduzidos no pacote de compras do governo destinado a escolas. Com isso, o setor fechou o ano com a surpreendente cifra de 79,5 milhões de exemplares vendidos, o que corresponde a 23% do total de livros comercializados no Brasil, incluindo obras didáticas.

Para acompanhar a evolução no segmento, a Câmara Brasileira do Livro (CBL) concedeu este ano, pela segunda vez consecutiva, o grande prêmio Jabuti de obra de ficção a um texto para crianças. O belo Bichos que existem & bichos que não existem, de Arthur Nestrovski com ilustrações de Maria Eugênia (Cosac & Naify), arrebatou o mesmo troféu conquistado, no ano passado, por O fazedor de amanhecer, de Manoel de Barros e Ziraldo (Salamandra). As duas foram, até hoje, as únicas obras infanto-juvenis vencedoras do mais importante prêmio editorial do País. “O sucesso de Harry Potter coincide com o resgate do livro como opção de entretenimento.

As crianças lêem porque gostam, e não porque têm de ler”, exalta o vice-presidente da CBL, Marino Lobello. “Hoje qualquer editora tem um selo infanto-juvenil e muitas livrarias têm um cantinho mobiliado para atrair a criançada”, diz. Todo esse movimento fica ainda mais completo após a eleição, em maio, de Ana Maria Machado para a Academia Brasileira de Letras.

Com mais de 100 títulos publicados e 14 milhões de exemplares vendidos, a madrinha maior da literatura infantil acaba de chegar do México, onde participou de duas feiras internacionais do livro, uma em Guadalajara e outra na capital. Na mesma semana, três obras suas foram lançadas na 1ª Feira do Livro Infantil, Juvenil & Quadrinhos de São Paulo. Abrindo caminho (Ática), O jogo do vira-vira (Formato) e Tapete voador (Atual) foram algumas das principais novidades do evento, que reuniu 90 expositores entre os dias 22 e 30 de novembro no Pavilhão da Bienal.

O músico paulista Hélio Ziskind, autor de trilhas de programas da TV Cultura, e o escritor maranhense Ferreira Gullar debutaram no segmento infanto-juvenil ao lado de autores como Katia Canton, Pedro Bandeira e Cláudio Martins. As maiores sensações, no entanto, foram os estrangeiros Harry Potter e a Ordem da Fênix, o novo livro de J. K. Rowling, e As maçãs do Sr. Peabody, segundo livro de Madonna (uma pouco talentosa lição de moral contra a fofoca). A mais inusitada de todas foi a edição brasileira de A história das cores, poema para crianças publicado no México em 1996 pelo líder do movimento zapatista Subcomandante Marcos.

Desde 1999, a Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil realiza no Rio de Janeiro o Salão do Livro para Crianças e Jovens. Em setembro, 35 mil pessoas visitaram o Galpão das Artes do Museu de Arte Moderna. A principal diferença da feira de São Paulo, promovida pela RPS Eventos e pela Associação Nacional de Livrarias, foi a introdução do segmento quadrinhos. Dessa forma, Mauricio de Sousa e Ziraldo foram escolhidos como patronos da primeira edição. “Mais da metade dos jovens de 14 a 21 anos lê quadrinhos.

Junto com Harry Potter, os mangás (gibis japoneses) são essenciais para incentivar a criança a ler”, diz o presidente da RPS, Roberio Paulo da Silva. “Além disso, as editoras perceberam que as crianças são exigentes e rejeitam obras com desenhos malfeitos, editadas em papel jornal”, diz.

Para zelar pela qualidade das obras, a Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil, com sede no Rio, realizou entre os dias 28 e 30 de novembro o primeiro encontro nacional da categoria, em São Paulo.

 

Coordenado pela escritora paulista Sílvia Cintra Franco – com 14 títulos publicados e um milhão de exemplares vendidos –, o encontro serviu para criar consenso em torno de reivindicações que agitam os bastidores da produção editorial. “Por mais que nosso segmento viva um período positivo, é preciso rever a situação dos ilustradores, que não recebem direitos autorais sobre o preço de capa, e firmar nossa posição de repúdio à submissão da literatura aos parâmetros curriculares elaborados pelo Ministério da Educação”, protesta Sílvia. “Como as editoras querem vender seus livros ao governo, acabam pedindo aos autores que abordem os temas sugeridos. Isso mata a liberdade de criação”, diz. Pelo menos, sugere o presidente da associação, Luiz Antonio Aguiar, que os autores sejam chamados a participar da reformulação conceitual dos programas de compra do governo. Já imaginou Machado de Assis cumprindo regras?