Teria Padim realmente existido? Teria sido ele mesmo o menino nascido nas barrancas de Apuama, beijocado por meninas tão jovens? Meninas “cujos amores extremados eram apenas a parte genuína dos outros amores alugados nas madrugadas”, nas palavras do próprio Padim, o José, filho de dona Tereza e de Franco. Aliás, do padre Franco Otto. Padim, José, silhueta ou fragmento de delírio, essa voz literalmente perdida na escuridão protagoniza O coletor de sombras (Audichrome Editora, 288 págs., R$ 29), romance de estréia do médico patologista paulistano Roberto Falzoni. Evocando a arquetípica “caverna de Platão”, Falzoni engaiola seu personagem em uma gruta, “envolvido pelo completo escuro”, vendo a tocha cair da mão e afundar-se lentamente fazendo rodeios na correnteza do rio. E “as imagens vão surgindo”.

Os sete capítulos do livro são emoldurados por epígrafes de artistas cuja obra namora a noção de vazio, labirintos, espelhos, desertos, espaços e indefinição – como Manuel Bandeira, Jorge Luis Borges, Fernando Pessoa, Pablo Neruda, Mário Quintana e Astor Piazzola – por que não? A senha para o mergulho é a etnia indígena wamaritedewa, que “sonha acordada”. Como Padim, o menino que nasceu entre prostitutas. Ficamos sabendo que sua avó Jacira teve Tereza com Antonio Alferes, um calígrafo com vocação de geógrafo e geólogo – assim como Falzoni; que foi criado com Pimba, neto da negra Veluma; que se casou com Josana, cujo nome índio era Penhari, habituada a conversar com Hu, uma onça.

Como na saga da família Buendia, descrita por Gabriel García Márquez em Cem anos de solidão, a trama do livro, ou seja, o devaneio de Padim, vagueia por décadas, gerações e lugares diferentes e sem relação entre si. A amizade entre os jovens Franco, o futuro padre, e Dario, o tocador de violino, por exemplo, tem como cenário a Itália rural. A aldeia amazônica que viu nascer o romance de Jacira torna-se palco de lutas encarniçadas envolvendo militares e civis, brancos e não-brancos, fogo, sangue e poeira elevados ao céu. De quando em quando, sem qualquer aviso, seja por magia, seja pela confusão mental promovida pelo afogamento iminente, surge a figura de Guba, o ancião que aprisiona imagens com areia dentro de garrafas vendidas na escadaria da igreja. É como se Falzoni resgatasse o paradoxo borgiano do conto Ruínas circulares. Não seríamos todos nós sonhos ou sombras coletados pelo outro? E quem seria esse outro?


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