Elas não são mulheres de Atenas, mas, como na música de Chico Buarque de Hollanda e Augusto Boal, vivem e temem por seus maridos e filhos, heróis e orgulho de Havana. Verdadeiras Penélopes tropicais, também esperam por seus homens, como Penélope esperou por seu marido, Ulysses, personagem mitológico cantado por Homero na Ilíada e na Odisséia. O herói viveu 20 anos fora de casa, primeiro combatendo na
Guerra de Tróia, depois enfrentando imensos perigos ao tentar voltar
ao lar, na ilha de Ítaca. Mantendo-se fiel durante esse tempo, Penélope tecia durante o dia uma mortalha e à noite a desfazia. Em torno daquelas esposas e mães cubanas, o regime de Fidel Castro teceu um manto protetor, transformando-as em heroínas para reforçar a fidelidade dos cidadãos à revolução. Anônimas até pouco tempo, essas mulheres viraram celebridades na ilha de Cuba depois que seus maridos e filhos – Gerardo Hernández, Ramón Labañino, Fernando González, Antonio Guerrero e René González – foram presos por agentes do FBI na madrugada do sábado 12 de setembro de 1998 em Miami, nos Estados Unidos. Acusados de espionagem, eles tiveram um processo repleto
de irregularidades – entre outras coisas, ficaram incomunicáveis por
17 meses, seus familiares foram ameaçados e os réus, julgados
num ambiente hostil. Em 14 de dezembro de 2001, no calor dos
atentados de 11 de setembro, foram todos condenados, três deles à prisão perpétua. O governo de Havana admite que os cinco estavam infiltrados na comunidade cubana para coletar informações sobre as atividades do poderoso movimento anticastrista radicado em Miami.
Mas alega que suas ações visavam prevenir novos atentados terroristas em Cuba, como os que ocorreram contra hotéis em Havana em 1998,
de autoria daqueles grupos.

A necessidade colocou essas mulheres na linha de frente da campanha do regime castrista pela libertação dos “cinco patriotas”, como são chamados em Cuba. Algumas não tinham a menor idéia das atividades de seus maridos e filhos entre os “contra-revolucionários” de Miami. Outras, se tinham, não admitem. Elas se viram no olho do furacão pouco a pouco, ao se sentirem ameaçadas e privadas dos mais elementares direitos de familiares de detentos. Nem a condição de cidadãos americanos de dois dos prisioneiros constrangeu a sanha vingativa das autoridades dos EUA. A engenheira Olga Salanueva Arango, 43 anos, é casada desde 1982 com o piloto e instrutor de vôo René González, 46, nascido em Chicago, com quem tem duas filhas (Irma, 18 anos, e Ivette, cinco). No momento da prisão, o casal vivia em Miami. “Eram cinco da manhã quando homens armados entraram violentamente em nossa casa, levaram René e vasculharam tudo”, lembra Olga. “Inicialmente, além de lhe ser negada a fiança, ele também foi proibido de ver seus familiares. Só depois de meses, meu marido pôde receber visitas. A primeira foi num salão contíguo ao cárcere e, na presença das meninas, René foi algemado a uma cadeira. E foi assim que ele praticamente conheceu nossa filha mais nova, Ivette, então com um ano de idade, porque, no momento da prisão, ela tinha apenas quatro meses. Chamou a atenção da menina o fato de ver o pai amarrado daquele jeito. Acho que se lembrou de cachorros presos por coleiras, porque ela perguntou: ‘Au-au?, au-au?’, pensando que o pai era um ‘au-au’. Isso me causou muita indignação, porque não era necessário humilhá-lo assim perante a família”, diz a engenheira, enquanto Ivette, indiferente a tudo, brincava e cantava alto em seu quarto.

Na verdade, as pressões começaram no dia seguinte à detenção, quando Olga foi visitada por agentes do FBI, sugerindo que seria melhor se ela “colaborasse”. Lembraram a ela que o governo poderia retirar-lhe a guarda das filhas, inclusive porque Ivette era cidadã americana. Pouco antes de começar o julgamento, os promotores propuseram a René atenuar as acusações em troca de se transformar em testemunha contra os demais. Ao mesmo tempo ameaçaram deportar Olga. René se recusou a colaborar, dizendo que provaria em juízo ser inocente. “Eu acabei presa pelo INS (Serviço
de Imigração e Naturalização americano) em agosto de 2000 e fiquei detida por três meses”, relata. A situação ficaria mais tensa porque, àquela época, voltava a Havana o menino Elián González, depois de
uma violenta batalha judicial entre o governo americano e o lobby
cubano na Flórida. Filho de uma balseira que morreu ao tentar chegar
aos EUA de barco, Elián ficara meses praticamente sequestrado por
seus parentes em Miami, militantes anticastristas, enquanto seu pai,
de Cuba, exigia a devolução do filho. “Eu morria de medo que minha
filha Ivette também ficasse refém da máfia anticubana, como Elián. Assim, não tive outra opção senão voltar a Cuba como deportada”, lembra. Em abril do ano passado, o Departamento de Estado revogou
-lhe o visto para que visitasse o marido. René, condenado a 15 anos, cumpre pena na prisão de Loreto, na Pensilvânia.

Sem filhos, a engenheira química Adriana Pérez, 32 anos, está há mais de cinco anos sem ver o marido, Gerardo Hernández, 35 anos. Graduado em relações políticas internacionais do Ministério das Relações Exteriores, caricaturista com cartuns publicados na imprensa cubana e exibidos em várias exposições, Gerardo sofreu a mais grave condenação – duas prisões perpétuas mais 15 anos. Além de espionagem, ele foi acusado de “conspiração para assassinato”, supostamente por ter fornecido informações ao serviço secreto cubano que permitiram a derrubada de duas avionetas da organização anticastrista Hermanos del Resgate, que invadiram o espaço aéreo cubano em fevereiro de 1996. Essa acusação foi incluída somente em maio de 1999. Depois da sentença, Gerardo foi transferido para a prisão de Lompoc, na Califórnia. “Fui impedida de ver meu marido e cheguei a ser detida durante 11 horas
e interrogada por agentes do FBI em Houston, no Texas. Agora,
sem explicações, não me concedem visto”, lamenta Adriana.
“Apesar disso, tenho confiança no futuro, assim como Gerardo”,
diz. O cartunista, mesmo sem ainda ter filhos, escreveu da prisão
uma carta intitulada “Aos meus filhos que estão por nascer”, na
qual explica a hipotéticos futuros rebentos por que o pai deles não
será tão jovem quanto os pais de seus amigos.

Mãe de duas meninas e uma enteada, a tradutora de inglês Elizabeth Palmeiro, 37 anos, disse que ficou perplexa quando soube que o marido, o economista Ramón Labañino, 39 anos, tinha sido preso pelo FBI em Miami. Embora seja funcionária do Ministério do Interior (que em Cuba cuida da segurança interna), ela jura que nada sabia das atividades dele. Oficialmente – inclusive para a família, diz Elizabeth –, o marido trabalhava numa empresa na Espanha. Na verdade, Ramón agia em Miami sob o nome
falso de Luis Medina. A tradutora garante que não ficou chateada,
muito pelo contrário, quando soube que seu marido estava infiltrado
entre os “gusanos” (vermes), como o regime chama a oposição anticastrista da Flórida. “Fiquei surpresa, claro, mas, sabendo da natureza do trabalho dele, senti orgulho”, conta. “Passei 27 meses
sem ter contato com ele, até que se iniciou o julgamento”, relembra. Ramón foi condenado à prisão perpétua mais 18 anos e foi transferido para a prisão de Beaumont, no Texas.

Aos 63 anos, Magali Llort Ruiz, divorciada, demonstra disposição de uma jovem militante ao defender as atividades do filho Fernando González, condenado a 19 anos. Nela, o dever revolucionário fala mais alto do que o coração de mãe. Já dona Mirtha Rodríguez, 70 anos, viúva de um ex-jogador de beisebol, se esforça por esconder a emoção ao falar do filho Antonio Guerrero, condenado à prisão perpétua mais dez anos. Nascido em Miami em 1958, Tony se formou em engenharia em Kiev (Ucrânia), na antiga URSS. No cárcere, passou a escrever versos, enviados à mãe e reunidos no livro Desde mi altura. Dona Mirtha diz ter “confiança na Justiça americana, no povo americano, que é o único que pode mudar esta situação”. Mas o discurso reto se esvai em lágrimas quando ela diz que lhe resta pouco tempo para ter esperança de rever o filho. “Perder um filho é difícil, mas não poder tê-lo a seu lado é muita crueldade. Não tenho palavras para explicar minha dor.” Talvez seja difícil para dona Mirtha seguir o conselho do poeta Mario Benedetti, inspirador do filho Tony: “Vamos aproveitar o pouco que nos resta.”

Os EUA criaram a máfia

m dos mais preparados quadros da liderança cubana, o presidente da Assembléia Nacional do Poder Popular (Parlamento), Ricardo Alarcón, tem se empenhado profundamente na campanha pela libertação dos cinco cubanos condenados nos EUA. Nesta entrevista exclusiva a ISTOÉ, ele diz que a direita americana criou o lobby em Miami, critica a Alca e diz esperar que nada mude nas relações entre Brasil e Cuba.

ISTOÉ – O caso dos cinco cubanos condenados em Miami é o mais recente capítulo do contencioso de Washington e Havana. Isso se deve apenas à pressão do lobby anticastrista em Miami?
Ricardo Alarcón – Creio que temos que desmistificar uma certa
lenda em torno da comunidade cubana de Miami. Na época de John Kennedy, quando o embargo foi decretado, não havia uma comunidade cubana influente nos EUA. Na verdade, foi a direita americana que fabricou o lobby anticubano, com esses grupos de origem cubana.
E eles enriqueceram graças ao Tesouro americano. Essa história
de comunidade é uma lenda. É uma minoria de gente com muitos recursos que teve isenções fiscais durante décadas. A idéia de
criar um lobby cubano-americano prosperou quando Ronald Reagan chegou ao poder, nos anos 80.

ISTOÉ – Mas há empresários americanos que têm interesse
em investir em Cuba. Esse setor não tem força suficiente
para se impor?
Alarcón – O presidente dos EUA tem muito poder. E este presidente (George W. Bush) prometeu que vetaria qualquer projeto de lei que modificasse o bloqueio a Cuba. Há muitos empresários americanos
que gostariam de comerciar com Cuba, principalmente no setor agroexportador. Ironicamente, esse setor está mais ligado ao Partido Republicano do que aos democratas. Isso explica por que a maioria
da Câmara, mesmo sendo republicana, votou pela eliminação das restrições em relação a Cuba. Ao mesmo tempo, nunca houve
tanta gente oriunda dessa máfia de procedência cubana em Miami
no Executivo federal. Para estes, o único problema da América
Latina é Cuba. É uma “cubanização”, ou melhor, “miamização”
da política latino-americana dos EUA.

ISTOÉ – A agenda de Washington para a América Latina se resume na implementação da Alca. O próprio PT teve que rever suas posições. No mundo globalizado, os latino-americanos podem ter alternativa econômica à Alca?
Alarcón – Eu creio que Lula e o PT, e em geral o Brasil, seguem o critério de que o caminho é o fortalecimento dos mecanismos de integração regional, dos quais o mais importante é o Mercosul.
Do ponto de vista de Cuba, nos sentimos muito felizes por estar excluídos do processo de discussão da Alca. Se estivéssemos incluídos, seríamos anexados pelos EUA. Nós desejamos a integração latino-americana e caribenha. Washington fala em abertura de mercados, mas o Brasil é um exemplo das consequências do protecionismo americano contra seus produtos – que o digam os exportadores de laranja, de aço. Se a Alca ainda não ocorreu nos termos que os americanos pretendiam, a principal razão se chama Brasil. E o Brasil que ainda não era governado por Lula, mas por Fernando Henrique Cardoso. O Brasil sempre soube defender seus interesses e os interesses da América Latina. Estou certo de que os brasileiros participarão desse processo como sempre fizeram.

ISTOÉ – Que tipo de mudança Cuba espera do governo Lula?
Alarcón
– Nenhuma. Estou seguro de que haverá continuidade,
quiçá um desenvolvimento, mas espero que nada mude realmente.
Não é necessário elaborar uma nova política. As relações bilaterais Brasil-Cuba têm um embasamento muito sólido. Temos uma série
de acordos bilaterais, grande parte subscrita durante o governo
FHC. As relações são excelentes, com uma solidez que não
é frequente na América Latina.

ISTOÉ – Como é possível manter as conquistas sociais do regime com as medidas capitalistas introduzidas na economia cubana?
Alarcón
– Foi o único modo de mantê-las. Vieram os dólares, mas não privatizamos nenhum serviço público. Encontramos capitalistas dispostos a vir como sócios nossos em algumas empresas mistas. Teria sido possível manter essas conquistas sociais se não introduzíssemos elementos capitalistas para enfrentar a terrível crise no início dos anos 90? É assombroso que Cuba tenha conseguido manter esses princípios básicos ao mesmo tempo que se abria ao capital estrangeiro, no mesmo período em que vários países da América Latina privatizaram até o ar que respiramos. Essa é a melhor prova de que ninguém é obrigado a privatizar toda a economia para atrair investimentos.