img.jpg
SER OU NÃO SER
Shakespeare revisava suas obras ou era desleixado e deixava tudo para os tipógrafos? Eis a questão

img1.jpg

Morrer, dormir, só isso. E com o sono – dizem – extinguir as dores do coração e as mil mazelas naturais a que a carne é sujeita.” Essa fala de Hamlet, o príncipe traído, dita na peça que leva o seu nome e uma das obras mais aclamadas do dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616), é conhecida por milhões de pessoas. No entanto, mesmo entre esses milhões, não são poucos os que ignoram que “Hamlet” pode ser lida e encenada em três versões diferentes – e que a escolha de uma dessas peças em detrimento de outra priva as pessoas de belíssimas passagens, presentes em uma, mas ausentes em outra. O mesmo se dá com outra tragédia do bardo de Stratford-upon-Avon, “Rei Lear”, da qual se tem notícia de dois “originais”. Pode parecer um mero detalhe, mas a ocorrência de tais obras “gêmeas” traz consequências – a mais grave põe em xeque a própria existência do seu criador. É com essa celeuma que se inicia o polêmico livro “As Guerras de Shakespeare” (Record), do jornalista americano Ron Rosenbaum, uma espécie de longa reportagem onde ele entrevista as maiores autoridades em teatro elisabetano e coloca em confronto diferentes abordagens sobre o escritor inglês – a maioria muito interessante; algumas bastante disparatadas.

Tome-se, por exemplo, o escocês Harold Jenkins, o homem que passou três décadas preparando a edição condensada de “Hamlet”. Seu “ser ou não ser” era a grafia de uma palavra, que aparece diferente nas versões da peça, mudando em cada uma o sentido da frase. Trata-se do verbo “to do” (fazer), que segundo ele teria sido grafado errado – o certo seria “to die” (morrer). Em torno dessas diferenças se construiu todo tipo de teoria. Existe aquela que diz que Shakespeare não estava muito preocupado com o texto impresso e escrevia direto para o palco. Outra imagina-o autor de diferentes esboços, sendo o mais completo, chamado Fólio (publicado em formato de “Bíblia”), a peça final. Há mais uma corrente segundo a qual o que chegou até nós são diálogos reconstituídos de memória pelos atores elisabetanos.
Nas brigas em torno da autoria aparece também a hipótese da existência de um William Shakeshafte, registrado num vilarejo a 300 km de Stratford. Ou a de um escritor mais velho, Thomas Kyd, criador da trama de “Ur-Hamlet”, que Shakespeare teria surrupiado. Nada disso, contudo, foi provado. O mesmo se dá em relação às obras apócrifas, como o poema “Elegia Fúnebre”, que trazia a curiosa assinatura W.S. Descoberto pelo professor Donald Foster, ele chegou a ser incluído nas obras completas do bardo, apesar das rimas pobres – o culpado pela heresia seria um programa de computador (SHAXICON), capaz de registrar a recorrência de “expressões shakespearianas”. Falsos Shakespeares como esse são comuns desde o século XVII, lembra Rosenbaum, mas o forjador mais famoso teria sido William Henry Ireland, que inundou o mercado editorial de dramas e versos inéditos em 1796. À espera de autenticação está a peça “Sir Thomas More”, com trechos realmente caligrafados pelo autor de “Romeu e Julieta”. Enquanto as evidências não se concretizam, os estudiosos apelidaram esse dramaturgo de “Mão D” – ele teria feito o trabalho em conjunto com as mãos “A”, “B” e “C”, um tipo de classificação que soa estranha para um leigo em pesquisa literária. Absurdo mesmo é a tentativa de um desses experts, Alexander Leggatt, em identificar um orgasmo em meio à tragédia amorosa de Julieta. Eis o trecho onde ele imagina a jovem virgem de Verona em êxtase: “Vem, noite suave, vem, noite amorosa de cenho escuro,/Dá-me meu Romeu e, quando eu morrer,/Toma-o e pica-o em estrelinhas.”  

img2.jpg