Da última vez que fui a Zurique, enquanto andava pela Bahnhofstrasse, conversava com meu marido sobre o potencial provocador desta que é considerada a avenida mais cara do mundo. O culto ao luxo e ao supérfluo, aliado aos preços milionários, cria uma atmosfera irreal e ultrajante à realidade do mundo em que vivemos, e pensar em hordas de indignados saqueando as maisons, não pelo desejo de possuir aqueles bens, mas simplesmente para conspurcar aquela “beleza” ofensiva, ostentada sobretudo por milionários e xeiques árabes ou por políticos e empresários corruptos, não me parece apenas um material para ficção.

O que aconteceu em Londres este mês foi só uma amostra do que pode estar por vir. Os adolescentes que saquearam a H&M e a Debenhams (mas não a livraria Waterstone’s) não se reuniram em volta de uma ideia política. Eles não acreditam em política. Eles não acreditam em livros e ideais. Eles acreditam num par de tênis. Eles acreditam num laptop e em roupas que há tempos observam nas vitrines sem poder comprá-las.

É nisso que eles acreditam. Talvez pelo ressentimento de estarem totalmente desconectados de uma sociedade de consumo, cuja ideia básica é nossa capacidade de participar desse mercado. Talvez essa onda de saques seja apenas uma deformação do que a nossa sociedade de consumo chama de participação. É como se essa garotada estivesse nos dizendo, “estamos participando assim, quebrando tudo e levando conosco aquele iPod, aquela calça, aquele tênis que não temos dinheiro para comprar”.

Não acredito que esses rapazes pensem que estejam cometendo crimes. Como notou a colunista Zoe Williams no jornal londrino “The Guardian”, eles não tiveram nem a preocupação de esconder o rosto, talvez porque nem sequer acreditem que serão punidos. “Só por conta de um tênis roubado? Que ideia é essa que vocês consumidores ativos têm a respeito de crimes?”
Tudo isso já foi escrito em demasia nos jornais europeus das últimas semanas. Mas o que mais me chamou a atenção foi o caráter epidêmico do que está ocorrendo.

Abordei no mês passado o caráter patológico dos suicídios, que tendem a ocorrer em séries. Sabe-se ainda que massacres do tipo Columbine também têm acontecido de forma epidêmica, como se um episódio engatilhasse o seguinte, seja pela celebridade imediata que confere aos seus perpetradores, seja pelo impacto que provoca na sociedade.

Agora vimos os saques em Londres varrer a Inglaterra de ponta a ponta também como numa pandemia. O que quer dizer tudo isso? Que, se antes éramos assolados por cólera, gripe espanhola e outras pragas, agora a grande moléstia que nos ameaça é uma coleção de epidemias comportamentais?

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Talvez seja difícil entender esse tipo de violência que não está diretamente ligado exclusivamente à diferença social e à miséria, e declarações de David Cameron e da direita do Parlamento londrino de que esses atos são “puro crime” mostram quanto esses políticos estão fora de sintonia com a realidade.

Intelectuais e sociólogos que pesquisam a questão afirmam que a violência é sim uma epidemia, uma nova moléstia social, derivação das inúmeras patologias urbanas. Resta saber se será possível inventar uma “vacina” contra esse novo tipo de gripe espanhola.  

Patrícia Melo é escritora. Colaborou esta semana, em substituição a Marcos Sá Corrêa, que, por motivos de saúde, não pôde escrever


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