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Romances baseados em crimes reais não são novidade. Raro é um autor inspirar-se no noticiário e transcendê-lo com uma profunda reflexão sobre os dias de hoje, como faz a escritora americana Joyce Carol Oates em “Minha Irmã, Meu Amor” (Alfaguara). Ela se baseou no assassinato da menina JonBenét Ramsey, de seis anos, candidata em concursos de beleza infantil, e discute a cultura da fama atual.  No livro,  a menina morta chama-se Bliss e é campeã de patinação. Sua história é narrada pelo irmão de 19 anos, que assume a voz da família desestruturada pela tragédia.

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Leia um trecho do livro: 
 

I

Coração de tinta vermelha

 

MINHA IRMÃ, MEU AMOR

SKYLER, ME AJUDE SKYLER, ESTOU TÃO SOZINHA

neste lugar, Skyler, estou com tanto medo Está doendo muito, Skyler

você não vai me deixar sozinha neste lugar terrível, vai Skyler?

Nove anos, dez meses e cinco dias.

Essa voz de criança na minha cabeça.

 


“SOBREVIVENTE”

 

AS FAMÍLIAS DISFUNCIONAIS SÃO TODAS IGUAIS. IDEM QUANTO

aos “sobreviventes”.

 

Eu. Sou eu o filho “sobrevivente” de uma famigerada família

norte-americana, mas é provável que, depois de quase dez anos, você

não se lembre de mim: Skyler.

 

Nome chamativo, não é? Skyler: sky, o que roda pelo céu.

Um nome especificamente escolhido por meu pai, que esperava

grandes feitos de mim, como seu primogênito e seu filho varão.


 

Um nome, acreditava meu pai, Bix Rampike, para destacar seu

portador do meramente corriqueiro.

 

Meu sobrenome, “Rampike”, esse fez as suas pálpebras tremerem,

não foi? Ram-pike. Dele — a menos que você seja propositalmente

obtuso, ou finja estar “acima disso tudo” (isto é, da devastação da América

dos tabloides), ou tenha uma deficiência mental, ou seja muito,

muito jovem — você com certeza já ouviu falar.

 

Rampike? Aquela família? A garotinha patinadora, aquela que

foi…

E quem fez aquilo nunca…

Os pais, ou um maníaco sexual, ou…

Lá pelos lados de Nova Jersey, anos atrás, já deve ter pelo menos

uma década…

 

Razão por que — finalmente! — eu me fiz começar seja lá o

que isto vier a ser, uma espécie de documento pessoal, um “documento

pessoal singular”: não um simples livro de memórias, mas (talvez) uma

confissão. (Já que, em alguns círculos, Skyler Rampike é suspeito de

homicídio, talvez você pense que tenho muito que confessar, não é?)

Como é apropriado, este documento não será cronológico/linear, mas

seguirá uma trilha de associações livres organizadas por uma lógica

interna inabalável (se bem que não detectável): será não literário, despretensioso,

desconcertantemente tosco/amadorístico, repleto de culpa,

adequado ao “sobrevivente” que abandonou sua irmã de seis anos à

própria “sorte”, em algum momento da “manhãzinha” de 29 de janeiro

de 1997, em nossa casa em Fair Hills, Nova Jersey. Sim, eu sou aquele

Rampike.

 Irmão mais velho da mais famosa criança de seis anos da história

dos Estados Unidos, se não de toda a América do Norte, se não

do mundo inteiro, porque, pense bem: quantas crianças de seis anos,

meninos ou meninas, americanos ou não, você já ouviu dizer que

tenham tamanho “reconhecimento” do nome e do rosto como Bliss

Rampike? Quantas têm mais de 500 mil citações na Internet? E quantas

foram imortalizadas por mais de trezentos sites/home pages/blogs

da Web, mantidos por cultuadores fiéis/enlouquecidos? Isto são fatos.

 

A ironia é que essa celebridade, pela qual os pais de praticamente

todas as crianças de seis anos do país seriam capazes de morrer,

só chegou postumamente para minha irmã.

 

E quanto a mim, Skyler? Anônimo e esquecível como uma bolha

de sabão. Está certo, uma bolha de sabão de aparência esquisita.

Se você acompanhou o caso de Bliss Rampike, o mais provável é que

só tenha vislumbrado o Skyler de passagem. O irmão foi ignorado, na

sua pressa de devorar com os olhos, entre cenhos franzidos pudicos e

desaprovadores, os documentos excitantes divulgados na Internet, as

fotos pirateadas da família Rampike, as fotos da cena do crime e do necrotério

e os laudos de autópsia, todos ilicitamente adquiridos, além de

um suprimento aparentemente inesgotável de vídeos de Bliss Rampike

no auge de sua breve mas deslumbrante carreira como a “mais nova”

Princesinha do Gelo de Jersey “de todos os tempos”, em 1996, patinando

para a vitória no rinque cintilante e gelado do Memorial de Guerra

de Newark. “Parecia um anjo” em seu traje de patinação morango,

todo de cetim e lantejoulas, com um saiote petulante de tule e uma

calcinha de renda branca aparecendo por baixo, e lampejos minúsculos

— “purpurina” — no lindo cabelo louro e cacheado, assim como

nos olhos úmidos e arregalados de menina; chega a dar um aperto no

coração ver aquela criancinha sozinha no gelo, na fria paisagem lunar

que cintila sob as lâminas reluzentes dos patins, ah!, aquele salto que

provoca um suspiro coletivo na plateia, o giro sobre dois patins, ago18

ra o giro sobre um só, são manobras complicadas até para campeões

de patinação mais velhos, são manobras cronometradas com precisão,

nas quais a menor hesitação, tropeço ou estremecimento de dor seriam

desastrosos, e, apesar de já ter assistido inúmeras vezes a essa gravação

(isto se você tiver a infelicidade de ser eu, Skyler Rampike), você começa

a sentir aquele proverbial suor frio ao ver a garotinha no gelo, e reza

para que ela não escorregue e caia… Mas então aparece a nota de Bliss:

5,9 dos 6 pontos possíveis.

 

E tudo isso ao som da batida de um rock suave de discoteca da

década de 1980, Do What Feels Right.

 


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