FOTOS: FREDERIC JEAN/AG. ISTOÉ

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Nunca vivemos tanto. A expectativa de vida do brasileiro hoje é de 73 anos, na Europa passa dos 80 e não é raro ver velhinhos de mais de 90 anos ativos nos países desenvolvidos. As conquistas da medicina favorecem a longevidade e há uma corrente de cientistas que acredita que os bebês nascidos hoje poderão ser centenários saudáveis. Para isso, médicos de várias áreas – em especial os pediatras – estão revendo suas atitudes em relação a essas crianças e suas famílias.

 

SUCESSO ISTOÉ procurou o bebê da reportagem feita em 1999 para saber os resultados do estilo de vida escolhido pelos pais para ela. Em dez anos, teve apenas resfriados

Além de cuidar de problemas que tiram o sono das mães, como as febres e as cólicas, e de acompanhar o desenvolvimento das crianças, eles têm agora uma nova atribuição. "Deve fazer parte da nossa rotina a identificação e prevenção das doenças que surgir no futuro", diz o pediatra Jayme Murahovschi, um dos maiores especialistas da área. "Isso pode construir condições para que as crianças não tenham problemas de saúde e desfrutem de boa qualidade de vida na idade avançada." Essa guinada na ação dos clínicos da infância acontece em alguns países da Europa, nos Estados Unidos e também no Brasil. As seis crianças, com idades entre 1 e 5 anos, que ilustram a abertura desta reportagem, por exemplo, têm seu desenvolvimento acompanhado por médicos dessa nova corrente

No Brasil, os ideais da nova pediatria são aplicados em um programa, criado há um ano e meio por pesquisadores do Instituto da Criança, da Universidade de São Paulo, que usa os recursos mais avançados da medicina para monitorar um grupo de crianças da zona oeste de São Paulo. "Vamos acompanhá- los desde o nascimento até o final da vida, se for possível", diz a médica Ana Maria Escobar, uma das coordenadoras da iniciativa e integrante de uma equipe formada por 25 pediatras, psicólogos, enfermeiros e assistentes sociais. Até agora, o projeto, que leva o nome Uma Nova Pediatria para Crianças que Vão Viver 100 Anos, atendeu 943 meninos e meninas saudáveis com idades entre zero e 2 anos.

Para entrar na vida dessas crianças e de seus pais, a primeira atitude dos médicos é conhec er a fundo cada participante do projeto. "Respondi a um questionário que perguntava detalhes das doenças até da minha bisavó, da educação dos meninos e dos arredores da minha casa", conta a técnica de enfermagem Simone Nascimento Santana, 23 anos, mãe de Gabriel, de 2 meses, e de Luís Felipe, 4 anos. O prénatal de Gabriel já foi feito nos moldes da nova pediatria. "Segui uma alimentação balanceada para não ganhar muito peso porque soube que meu bebê teria maiores chances do que outros de desenvolver diabetes por herança genética, justamente da minha bisavó", diz ela.

"Precisamos conhecer as doenças familiares em até três gerações e o ambiente onde a criança vive. Só depois disso é que se pode intervir para mudar alguma coisa", explica a pediatra Ana Maria. Os resultados dessas entrevistas indicam que mais de 70% das famílias possuem pelo menos um fator de risco, como pressão alta, colesterol elevado, diabetes ou casos de derrame. Esses fatores têm força suficiente para reduzir a qualidade de vida desta geração no futuro. "Isso eleva as chances de as crianças virem a ter os mesmos problemas", explica a pediatra Ana Maria.

Após a primeira consulta, a família recebe, semanalmente, a visita de um médico do projeto e um agente comunitário. Eles conversam com os pais, checam as condições da casa (se a criança for alérgica, podem sugerir mudanças no ambiente) e fornecem orientação nutricional (dão dicas de como fazer os pequenos comer legumes, por exemplo). O bebê de zero a seis meses passa uma vez por mês por consulta com o pediatra, quando são verificados peso, desenvolvimento e possíveis alterações de comportamento. De seis meses até um ano, a visita ao consultório é bimestral. A partir de um ano são semestrais ou anuais, dependendo do risco identificado para a criança desenvolver doenças. Em todas as ocasiões, além do pediatra, um psicólogo participa da consulta. Se ela estiver no grupo de risco, aos dois anos começa a fazer exames de sangue a cada seis meses para avaliar taxa de glicemia e de colesterol. Do contrário, esses testes só têm início perto dos dez anos.

O objetivo desse modelo de atendimento é corrigir desvios na alimentação e no estilo de vida desde o nascimento. Eles podem evitar que os pequenos manifestem os primeiros sinais de um grupo de doenças silenciosas que causam danos a médio e longo prazos – os males crônicos e degenerativos -, como diabetes, hipertensão, obesidade e arteriosclerose, o acúmulo de placas de gordura no sangue. "Hoje se sabe que essas doenças lançam suas raízes na infância e progridem durante a vida até suas consequências surgirem por volta da terceira ou quarta década de vida", disse à ISTOÉ o cientista Mark Hanson, diretor do Instituto de Ciências do Desenvolvimento e professor da Universidade Southampton, na Inglaterra. O instituto está na liderança das pesquisas que estudam as origens de doenças como a arteriosclerose, causadora de derrames e enfartos. "É triste, mas nossos estudos mostram que muitas crianças já têm sinais desse tipo de problema aos nove anos", diz Hanson.

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ADESÃO Simone Santana aplica as regras da USP na vida dos filhos Luis Felipe, 4, e Gabriel, 2 meses

Mesmo fora do projeto da Universidade de São Paulo, a mudança de hábitos da população tem levado as crianças a precisar de exames cada vez mais cedo, segundo o pediatra Julio Dickstein. Testes para detectar problemas de tireoide são indicados a partir de 6 anos, se houver histórico de doença na família. A médica Dalva Sayeg, da Sociedade Brasileira de Pediatria, defende que a infância é a época ideal para cultivar bons hábitos de sono e de alimentação porque até os 6 anos o organismo está em pleno desenvolvimento. "Quem tem bons costumes desde cedo, os leva vida afora", diz. Os cuidados com a nova geração começam ainda na maternidade, onde é feito o teste do pezinho, que permite detectar e prevenir doenças metabólicas. Nos primeiros dias de vida, os médicos realizam também exames de audição, visão e até prevenção de cáries, algo que não estava no protocolo dez anos atrás. Além disso, há uma série de vacinas tomadas na infância.

A próxima etapa do trabalho desenvolvido no Hospital das Clínicas será aplicar os conhecimentos da genética na prevenção de doenças crônicas e degenerativas. É nessa linha que trabalha o instituto de Hampton, na Inglaterra. Estuda-se o modo como o ambiente das crianças e também da gestante interferem na manifestação de genes associados às doenças. Isso inclui também condições sociais, como os níveis de violência, saneamento básico e educação. "Até pouco tempo atrás, achava-se que a carga genética de alguém era imutável, uma sentença.

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FUTURO A pediatra Ana Escobar procura sinais de doenças que diminuem a expectativa de vida

Mas agora sabemos que fatores como a alimentação, o sono, a atividade física e as doenças influenciam no comportamento dos genes", explica Sandra Grisi, chefe do Departamento de Pediatria do Hospital das Clínicas da USP. Essa análise será feita em parceria com o Laboratório de Genômica Pediátrica. A princípio, os pesquisadores vão rastrear a presença de genes que predispõem a doenças como o colesterol elevado e a pressão alta no organismo infantil. "O maior conhecimento desses marcadores poderá orientar a escolha dos tratamentos", diz o geneticista Carlos Alberto Moreira-Filho, coordenador do laboratório. Os achados da genética também poderão levar à descoberta de novos medicamentos e auxiliar na prevenção do câncer.

Uma outra vertente do projeto da USP acompanha crianças que já apresentam doenças crônicas, como a asma. "Sem controle, ela é um dos itens que rouba anos de vida saudáveis", diz a pediatra e imunologista Magda Carneiro- Sampaio, do Instituto da Criança e uma das precursoras da nova pediatria. De acordo com dados levantados pelo hospital, até 20% das crianças paulistanas sofrem com a doença, também chamada de bronquite ou bronquite asmática.

Uma das determinações do programa é impedir que as crianças afetadas por doenças respiratórias recebam tratamento apenas nas crises. "Durante o atendimento de emergência elas tomam altas doses de um tipo de anti-inflamatórios, os corticoides, que aumentam as chances de efeitos colaterais", explica a especialista Cristina Jacob, da USP. Uma das consequências do elevado uso desse tipo de remédio é a interferência no crescimento. "O correto é tratar preventivamente por alguns meses, com medicamentos inaláveis", diz ela. Ela orienta os pais a conterem também o ímpeto de dar analgésicos e outros remédios aos filhos. A atual geração é muito medicada. Um estudo americano recente mostrou que, no prazo de apenas uma semana, pelo menos 10% das crianças dos Estados Unidos haviam tomado analgésicos ou sedativos.

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HÁBITO Sheila Gedanke (à esq.) acostumou os filhos Rafael, Carol e Dominique à alimentação controlada

A alimentação para prevenir a obesidade é um dos focos importantes da nova pediatria. Faz sentido: nas últimas duas décadas, o problema do sobrepeso cresceu 239% entre crianças e adolescentes, de acordo com a Associação Internacional para Estudos da Obesidade. O fato de aumentar também entre adultos é um agravante, pois, além da tendência familiar, estudos da Universidade da Califórnia sugerem que a convivência com alguém que não controla o peso favorece os exageros na alimentação. E é exatamente aí, na dinâmica do grupo, que os médicos alinhados com esta nova corrente da pediatria procuram intervir. Uma das propostas é agir antes mesmo que a criança comece a formar seus hábitos alimentares.

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ATENÇÃO Acchile Petriglia saiu da consulta de Giuseppe com pedido para medir o próprio colesterol

Foi assim na casa do empresário Acchile Petriglia. Todos entraram no esforço para cortar calorias e seguir uma alimentação mais saudável depois que o pequeno Giuseppe, de 7 meses e meio, deu os primeiros sinais de que carrega consigo a tendência familiar de engordar. O peso do bebê é controlado pelo pediatra de maneira ainda mais rígida porque a avó é diabética. "O médico deu receitas de papinhas menos calóricas para o meu filho e me pediu exames para controlar o meu próprio colesterol", conta Acchile.

Essa é mais uma diferença da nova pediatria em relação ao atendimento convencional. "Sentimos que o nosso pediatra cuida da família", diz Maria de Fátima, mãe de Giuseppe. "Ele me passou uma dieta e disse ao meu marido que precisamos nos cuidar para ver nosso filho crescer." O pediatra Fábio Ancona Lopez, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), aprova a medida: "O aumento da obesidade em crianças e adolescentes é mais um fator que predispõe o organismo a outras alterações da saúde e pode prejudicar a expectativa de vida."

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PESQUISA O geneticista Moreira estuda o comportamento dos genes ligados às doenças

De fato, quando a adaptação começa nos primeiros anos, a adoção de uma alimentação mais saudável ao longo da vida não será um problema. Depois de amamentar os três filhos até um ano, a arquiteta Sheila Gedanke colocou-os em uma dieta com pouco sal, açúcar, carne vermelha e livre de arroz branco por ordem do pediatra. "Ele cuidou de mim na infância e confio nas suas indicações", garante dela. De acordo com o pediatra Jayme Murahouschi, seguir uma alimentação pobre em carboidratos de fácil digestão, como arroz branco, bolachas e macarrão, é um meio de controlar melhor o aumento das taxas de açúcar no sangue. "Ajuda a prevenir a diabetes e manter os indicadores do organismo saudáveis", garante. Apesar de radical, Sheila diz que a dieta deu certo com os jovens Dominique (15), Rafael (13) e Carol (9). "Eles têm uma saúde excelente", garante.

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Negociação igualmente delicada para os especialistas que trabalham pela longevidade é a introdução de exercícios na rotina familiar. Um estudo da Universidade Federal de São Paulo dá uma noção do tamanho da dificuldade: 81% dos alunos de escolas particulares e 65% das públicas fazem menos de dez minutos de atividade física por dia. "Assim como a alimentação, esta é mais uma circunstância para ser gerenciada logo no início da vida", diz a nutricionista Maria Luiza Ctenas, de São Paulo. Ela fala com propriedade. Há dez anos, quando nasceu sua terceira filha, Maria Eugênia, Maria Luiza foi entrevistada por ISTOÉ para uma reportagem sobre os avanços para combater doenças cardiovasculares. Disse que a menina seria amamentada pelo maior período possível com leite materno tomaria todas as vacinas e, se tudo desse certo, poderia viver até os 120 anos de idade.

Nos anos seguintes, a menina foi orientada pela mãe a provar todo tipo de alimento, mesmo os impopulares entre as crianças, como o jiló, para descobrir sabores e compor uma dieta rica em nutrientes. Além disso, toda semana ela faz pelo menos seis horas de balé. Apesar da rotina agitada, a mãe também arruma tempo para almoçar com a filha uma vez por semana na escola. "É uma forma de reforçar os bons hábitos alimentares", diz a nutricionista.

Na semana passada, ISTOÉ procurou Maria Eugênia para ver os resultados do estilo de vida saudável no qual seus pais decidiram investir. "Eu acho que nunca fiquei doente", diz a menina, que esbanja disposição. "Ela tem boa resistência e nunca precisou tomar antibióticos ou outros remédios. Se houvesse necessidade, teríamos usado, sem dúvida. Lembro-me de ter dado, no máximo, um analgésico contra resfriado", diz a mãe, que comemora a escolha. "Acho que estamos no caminho certo para que ela tenha uma vida mais longa e com qualidade."

Colaborou Renata Cabral