Após uma visita às pirâmides do Egito, Clarice Lispector, então com 19 anos, segredou a um amigo as suas impressões: “Tudo isso é de um mau gosto horrível”. E desdenhou, nada mais, nada menos, o monumento dedicado à Esfinge: “Eu não a decifrei. Mas ela também não me decifrou.” O tempo passou, Clarice se tornou uma das maiores escritoras brasileiras e grande parte da inteligência literata do País permaneceu diante dela como a fria Esfinge: o que Clarice quer dizer com o que escreve?

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Mais de sete décadas depois, a personalidade enigmática da escritora, cultuada fora e dentro dos meios acadêmicos, ganha ares menos místicos e mais realistas em uma nova biografia: “Clarice,” (Cosac & Naify), de autoria do escritor americano Benjamin Moser e lançada nos EUA com o título “Why This World”. O livro recebeu elogios da imprensa especializada americana e britânica, que alçou a autora de “Perto do Coração Selvagem” ao rol dos escritores clássicos da literatura mundial, como Virginia Woolf, James Joyce, Franz Kafka e Jorge Luis Borges.

De certa forma, a exaustiva e pragmática pesquisa empreendida pelo biógrafo (700 páginas) contribui para humanizar o mito criado em torno da autora nascida na Ucrânia em 1920, naturalizada brasileira e falecida no Rio de Janeiro, em 1977.

O estrangeirismo de Clarice foi sempre um assunto tabu para ela mesma e a única “acusação” que a tirava do sério. Contribuía para esse rótulo o fato de ela ter vivido por 20 anos no Exterior após se casar com o diplomata Maury Gurgel Valente. E também a língua presa, interpretada como um “sotaque” por seus interlocutores. “Não sou francesa. Esse meu err é defeito de dicção”, dizia ela, irritada e fumando um cigarro atrás do outro. Chegou a cogitar uma cirurgia corretiva, mas logo desistiu da ideia por um outro temor: se desvincular de suas características originais.

O autor dedica um longo capítulo às suas origens, a começar pela dramática saga da família Lispector em fuga da Ucrânia durante a Primeira Guerra Mundial e o conflito civil na Rússia. Pouco antes de engravidar de Clarice, sua mãe, Mania, contraiu sífilis após ser violada por soldados russos. Ela morreria nove anos depois, no Recife. O biógrafo revela que em visita à Ucrânia, Clarice foi convidada a visitar a cidade onde nasceu. Recusou-se. Viver no Exterior foi mortificante para ela: “A Suíça é um cemitério de emoções. As pessoas são muito silenciosas. Eu sou a única que ri por aqui.” Em 1959, decidiu vir embora para o Brasil e o fez, trazendo consigo seus dois filhos.

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JAMES JOYCE DOS TRÓPICOS
Clarice está entre os mestres da literatura mundial

A única viagem que pensou em realizar, anos depois, foi de volta ao Cairo, para rever a cidade que lhe causara má impressão 28 anos antes e encarar novamente a Esfinge. “Vamos ver quem devora quem”, escreveu Clarice.

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O BIÓGRAFO AMERICANO
Apaixonado pela obra de Clarice Lispector, o escritor americano Benjamin Moser veio ao Brasil para divulgar o seu livro. Ele também
é um dos colaboradores da edição “Clarice na Cabeceira” (Rocco), obra recém-lançada que traz 14 contos da autora escolhidos por
diferentes personalidades como Maria Bethânia e Rubem Fonseca

Leia a introdução do livre “Clarice,”, do escritor americano Benjamim Moser