Oimbróglio começou com uma cervejada de fim de ano: no mês passado, autoridades da Coréia do Norte convidaram os dois enviados pela Organização das Nações Unidas no monitoramento do programa atômico do país para tomar umas e outras na usina nuclear de Yongbyon. Antes de destampar as garrafas, porém, os norte-coreanos quebraram os lacres que selavam um reator de cinco megawatts. Aquela seria também a saideira para os inspetores
internacionais: no dia seguinte, eles foram convidados a se retirar.
Abria-se, assim, uma caixa de Pandora. O ato solene significava que
o hermético regime capitaneado pelo ditador Kim Jong Il estava oficialmente rompendo o acordo de não-proliferação nuclear, de 1994. Reiniciaria, portanto, na prática – longe dos olhos internacionais – seus avançados esforços para o desenvolvimento da bomba A. Na verdade, desde outubro passado, o governo de Washington já havia provado o gosto amargo do que seria esta bebedeira quando autoridades de Pyongyang confirmaram ao subsecretário de Estado americano, James Kelly, que estavam mesmo operando um programa secreto de enriquecimento de urânio. Com a reinauguração da usinas de plutônio, agora o país tem duas frentes para conseguir seu arsenal radioativo.

A cervejada de Yongbyon pode acabar em pizza ou em pancadaria.
O resultado dependerá em muito do minueto diplomático, do qual o governo George W. Bush – conhecido pela falta de jogo de cintura –
é um dos principais dançarinos. As cervejas, e as relações entre os Estados Unidos e a Coréia do Norte, começaram a ser colocadas no freezer logo depois da festa de posse de W. Bush em 2001. Ao contrário de seu antecessor, Bill Clinton, que procurou engajar o regime de Pyongyang num clima de détente, o atual ocupante da Casa Branca partiu para o ataque. Em seu discurso ao país, depois dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, Bush cunhou a famosa frase “Eixo do mal”, no qual incluía Iraque, Irã, e a Coréia do Norte. “A sentença deveria ser apenas uma força de retórica num discurso amplo sobre a disposição de revide do país às agressões externas. Mas a metáfora acabou ganhando maior peso e virou slogan desta administração”, diz o consultor republicano Edmund Reynolds. Dali para a frente, o diálogo entre as nações foi transformado cada vez mais em bravata de botequim.

Desde outubro, Japão e Coréia do Sul aconselham moderação. Vizinhos
de Pyongyang, eles seriam os países que mais duramente sofreriam
com um ataque norte-coreano. Ambos vêm tentando abrir os canais
de comunicação entre as partes. A China também quer amansar na conversa o regime acima do Paralelo 38º, que protege. Todos têm
muito a perder numa possível briga. A Coréia do Norte tem mísseis capazes de pulverizar Seul e Tóquio. E Pequim tem medo da invasão
de um exército de descamisados, refugiados dos escombros norte-coreanos em caso de retaliação americana. Mesmo sem guerra, os chineses enfrentam imigrações massivas de coreanos famélicos. Cerca
de dois milhões de súditos de Kim Jong Il morreram de fome nos últimos anos, e a quantidade de conterrâneos ameaçada com o mesmo
destinose conta aos milhões. Além disso, a China perderia um cliente formidável, pois fornece dois terços do petróleo da Coréia do Norte.

Esse quadro de miséria faz com que vários analistas acreditem
que a solução para a situação de agora é a mesma de sempre:
ao invés de cerrar os punhos, os EUA deveriam abrir a mão. O
jogo norte- coreano é a chantagem: estufa o peito para poder
encher a barriga. “O governo Clinton percebeu essa manobra e
aproveitou oportunidades para criar o caminho da paz”, diz George Stephanopoulos, ex-secretário de Comunicação de Bill Clinton.
Alimentos e remédios foram entregues a título de ajuda humanitária
e as torneiras de petróleo do Ocidente também foram abertas para Pyongyang. É verdade que a maior parte desses recursos foi direto
para as casernas, com a população ficando apenas com uma fração.
Mas foi o suficiente para abrir o sorriso do ditador Kim Jong Il.

Há pouco mais de dois anos, numa surpreendente campanha de relações públicas, o Líder Querido de Pyongyang recebeu o presidente sul-coreano, Kim Dae Jung, e depois a então secretária de Estado americano, Madeleine Albright. O ditador tem notório gosto por boas comidas, muitas bebidas e mulheres. Também é fã de cinema, com coleção de vídeos com 15 mil títulos. Uma série favorita era a das aventuras de James Bond. Isso
até o lançamento do novo filme: (Um novo dia para morrer), onde os norte-coreanos são
os vilões. Kim protestou duramente contra essa caracterização. Teve o total apoio
de seus vizinhos sul-coreanos, que ficaram justamente ofendidos com as cenas finais, onde 007 passa em
armas a magnífica Halle Berry, dentro de um templo budista.

Além da birra contra 007, os coreanos estão unidos em outros assuntos. O presidente eleito da Coréia do Sul, Roh Moo Hyun, que tomará posse
no mês que vem, ganhou o cargo com uma plataforma crítica à política americana na região. É a primeira vez desde a guerra que os sul- coreanos demonstram oposição a seus protetores de Washington.
“Nossa política com relação ao norte é a de entendimento diplomático
e estreitamento de relações. Não nos parece que Washington deseje percorrer o mesmo caminho”, disse a ISTOÉ um diplomata da missão
sul-coreana na ONU. Nas ruas de Seul se ouvem os ecos cada vez mais estridentes dessa política de reintegração das duas metades coreanas.
A irritação com os americanos vem aumentando, não só pela linha-dura adotada pelo governo Bush com relação ao Paralelo 38º, como pela insensibilidade do Departamento de Defesa dos EUA, que deixou de
punir soldados acusados de cometer crimes em território sul-coreano.

“O presidente Bush sabe que Kim Jong Il não é Saddam Hussein”,
disse a ISTOÉ um funcionário da Casa Branca. Esta distinção
fica patente com o fato de Bush ter declarado repetidas vezes
que não há intenção de ações militares contra Pyongyang.
Afinal, se Saddam é apenas suspeito de tentar fabricar armas
químicas, Kim Jong Il é suspeito de ter a bomba atômica, com possibilidades de aumentar o estoque em questão de meses.

Em vista disso, na terça-feira 7, o governo americano, reunido com representantes de Seul e Tóquio, voltou atrás em sua postura de não negociar com Pyongyang antes do congelamento de seus programas nucleares. “Já é um passo importante”, disse o vice-ministro das
Relações Exteriores sul-coreano, Lee Tae Sik. Essa crise, porém,
talvez pudesse ser resolvida se os Estados Unidos assinassem um
pacto de não-agressão com a Coréia do Norte, prometendo alguma
ajuda econômica. Mas a linha-dura de Washington ainda não se convenceu de que o ditador coreano cumpriria os acordos assinados. Deste modo, o que poderia terminar com o estouro de rolhas
de champanhe corre o risco de acabar em explosão nuclear.

HERANÇA DA GUERRA FRIA

Senhor presidente, eu tenho notícias muito graves. A Coréia
do Norte invadiu a Coréia do Sul”, disse por telefone o secretário
de Estado ao presidente americano. Eram 21h20 de 25 de junho
de 1950. O secretário, Dean Acheson, era o principal alvo da
direita macartista americana, que acusava a administração do presidente democrata Harry S. Truman de ter “perdido a China”
para os comunistas em 1949. O ditador norte-coreano Kim Il-Sung convencera seus aliados Josef Stálin e Mao Tsé-tung de que Washington não interviria num conflito na Coréia, península ocupada pelo Japão até 1945 e que a guerra fria dividira em dois Estados
em 1948: uma tirania comunista no Norte e uma ditadura anticomunista no Sul. Numa blitzkrieg surpresa, sete divisões de infantaria e uma brigada blindada, num total de 95 mil soldados
norte-coreanos, cruzaram o Paralelo 38º , tomaram Seul e empurraram o Exército sul-coreano para o porto de Pusan, no extremo sul.

Para não dar mais argumentos à direita republicana, o presidente Truman respondeu rapidamente: sob o manto da ONU, uma força liderada pelos EUA foi despachada para repelir o invasor e restabelecer o status quo. Graças ao general Douglas MacArthur, comandante das tropas de ocupação do Japão, que desembarcou marines em Ichon, perto de Seul, os americanos, sul-coreanos e aliados romperam o cerco comunista. Foi então que a Casa Branca, inebriada com a contra-ofensiva, decidiu invadir a Coréia do Norte para reunificar a península na marra, ignorando as advertências do premiê chinês Zhou Enlai. Em represália, quase 200 mil soldados chineses entraram na Coréia e tomaram Seul, forçando os americanos e seus aliados a recuar. MacArthur, que queria estender a guerra até o território chinês, foi afastado. Diz a lenda que o impetuoso general teria ameaçado jogar bombas atômicas na China, mas o palpite infeliz
foi mesmo de Truman. Com pesadas baixas, a guerra se estabilizou
em 1951. Um armistício seria assinado em junho de 1953, perpetuando a divisão das Coréias. A guerra matou mais de 200 mil soldados
das forças da ONU e coreanos (sendo 40 mil americanos); 1,6 milhão de comunistas (60% dos quais chineses) e mais de três milhões
de civis coreanos. Pôs fim também ao longo período do Partido Democrata na Casa Branca, ocupada a partir de 1953 por
outro general e herói da Segunda Guerra, Dwight Eisenhower.

Cláudio Camargo