Em “Madame Bovary”, Flaubert nos brinda com uma passagem que a literatura dramática tomaria emprestada inúmeras vezes, nos anos seguintes, adaptando cenários e personagens. Nela, a heroína, no meio de um fabuloso baile, flagra os camponeses com os narizes espremidos de encontro às vidraças, admirando o fausto e esplendor da ocasião. Na verdade, a cena mais do que denuncia; profetiza um futuro de excluídos que se aglomeram para espiar o objeto do desejo, nas vidraças daquilo que chamamos de civilização, e todos nós sem exceção reconhecemos a situação de imediato.

Sou do tempo em que ações sociais faziam-se todos os dias. Todas as casas da rua tinham seus pobres e, logo depois do almoço, as meninas vinham, em procissão. Geralmente cabia à filha mais velha essa função. Elas batiam nos portões trazendo as marmitas de alumínio. A nossa chamava-se Sidnéia e era pontual como um relógio suíço, como dizia vovô. Era frequente mamãe exclamar: Sidnéia já passou? Meu Deus! Como estou atrasada! Sidnéia era nosso meridiano, por assim dizer.

Sidnéia, ao contrário dos figurantes do século XIX, não espremia o rosto por entre as grades do portão para tentar flagrar uma nesga de jardim. Muito pelo contrário. Ela ficava parada, ali, tentando esconder a vergonha, olhando para a copa da mangueira, enquanto tia Eurídice arrastava seus chinelos de volta à cozinha para encher as vasilhas. Durante toda a espera, eu ficava à espreita, às vezes sobre o abrigo dos barcos, às vezes, trepado num galho de árvore, tentando flagrar seu olhar e tornar-me solidário com seu constrangimento, mas ela quase nunca permitia algum contato visual.

Eu, entretanto, insistia. Não me lembro de ter trocado uma única palavra com ela, mas guardei seu nome, que mamãe repetia, consultando o relógio da parede: Sidnéia ainda não chegou, gente? Vai ver aconteceu alguma coisa… E guardei sua imagem: as pernas magras, o rosto marcado pelo peso de seus 12 anos e um vestido de algodão com a estampa esmaecida, como se as flores tivessem murchado em seu corpo.

O cabelo era ralo e curto e o sorriso ela nunca exibiu. Talvez pelos poucos predicados, a lembrança eternizouse com um luxuriante fundo de buganvílias em flor, aquelas mesmas que bordavam o muro. É claro que não sei o que aconteceu com ela, se ainda está viva, se lembra daquelas tardes em que aguardava a caridade no portão lá de casa, não sei nada. Mas Sidnéia me deixou, entretanto, a lembrança de um olhar que até hoje é inesquecível. O olhar de quem já não sonha. E eis, tardiamente, a razão da crônica, eu já me lembro! Tenho a minha frente seis cartas endereçadas a Papai Noel, escritas à mão por crianças carentes.

É uma linda iniciativa dos Correios e a campanha cresce a cada ano, com padrinhos que escolhem e presenteiam aquela criança, naquele Natal. Ingrid tem 10 anos, quer conhecer o pai e pede a Papai Noel uma bicicleta rosa. Ingrid, assim como Sidnéia, também espreme o nariz na vidraça e é justo que alguém um dia a convide para dar uma volta no salão. A campanha chama-se Papai Noel dos Correios e vale a pena participar. O inesperado, acreditem, costuma retribuir as surpresas.

Miguel Falabella é ator, diretor, dramaturgo e autor de novelas