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REAÇÃO
Os noruegueses promovem a marcha das flores para homenagear
os mortos no atentado e reafirmar seu gosto pela democracia

Em “O Inimigo do Povo”, famosa peça do escritor norueguês Henrik Ibsen (1828-1906), o personagem central era um médico que, em nome da verdade, enfrentava a população inteira de um certo balneário para denunciar a poluição das águas do local. Criador do teatro realista moderno, Ibsen estava interessado em discutir com seu texto a “podridão” que via na própria sociedade de seu país. Um século depois da encenação da peça, porém, já tinha se tornado difícil imaginar quais seriam, afinal, os graves problemas que Ibsen conseguira detectar na Noruega – aquela nação “onde nada acontecia”. A Noruega moderna sempre foi vista como um paraíso, recanto rico e tolerante, que se mostrava ao mundo cada vez mais capaz de acolher imigrantes de todos os cantos, gente cansada de lugares onde acontecem coisas demais.

Até que surgiu Anders Behring Breivik, um inimigo da humanidade. O direitista fanático que promoveu o primeiro atentado da história da Noruega, matando pelo menos 76 pessoas, mostrou um poder de destruição inimaginável. De uma só vez, expôs o tumor do nacionalismo e da xenofobia que viceja na Europa e virou um dilema para a sociedade escandinava: como manter liberdades e elevado espírito humanitário e, ao mesmo tempo, se proteger do terror de monstros como Breivik? Os noruegueses ainda não têm todas as respostas. Não sabem nem mesmo como punir o homem que na sexta-feira 22 explodiu o centro de Oslo e em seguida fuzilou jovens militantes do Partido Social-Democrata que acampavam na ilha de Utoya, a 40 quilômetros da capital. A pena máxima na Noruega não passa de 21 anos. Por enquanto, a alternativa da Justiça é indiciar Breivik como assassino contra a humanidade, o que poderia elevar a pena para 30 anos, e depois interná-lo como maluco.

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RACISTAS
Facção criada em Londres impulsionou os planos do
terrorista norueguês. Por toda a Europa, cresce a xenofobia

O atentado de Breivik revelou que ninguém na Noruega estava preparado para ficar cara a cara com o terror. A polícia foi constrangedora: helicópteros não puderam ser enviados a Utoya porque todos os pilotos estavam de folga e até a lancha que devia chegar ao local encrencou, dando ao assassino pelo menos uma hora e meia para a execução da chacina. Na Noruega, o número de assassinatos é baixíssimo. Em 2009, aconteceram ali apenas 31 homicídios. As vítimas de Breivik, portanto, representam mais de dois anos de estatísticas. Numa comparação grosseira, o número seria equivalente a quase 100 mil brasileiros assassinados de uma só vez (por aqui, ocorrem 43 mil homicídios por ano).

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Em geral, a Noruega é lembrada apenas como o lugar dos fiordes majestosos, da aurora boreal e do sol da meia-noite. A terra do bacalhau, arenques, natas azedas e de um povo belo e bem nutrido, apreciador de renas assadas com batatas. Oslo é uma capital onde se pode passear em segurança pelas ruas às duas da madrugada. Onde as casas dispensam trancas, as bicicletas são deixadas sem cadeados pelas calçadas e as bancas de revista não precisam de vendedores para cobrar ou fazer o troco. Os noruegueses se orgulham de ter o presídio mais humano do mundo, Halden, onde os detentos são alojados em confortáveis dormitórios, sem grades nas janelas, e têm à disposição ginásio de esportes, estúdio de música e biblioteca. O petróleo farto do Mar do Norte permitiu à Noruega constituir um fundo soberano de 400 bilhões de euros, o maior do mundo. O governo se deu ao luxo de contratar um filósofo para refletir sobre os investimentos éticos desse tesouro.

Antes da assombração de Breivik, a maior ameaça à segurança do país tinha sido uma estranha onda de atentados e assassinatos comandados por bandas de black metal (leia quadro na pág. 101), nos anos 90. Fora isso, a polícia, sempre desarmada, esteve mais ocupada em prender arruaceiros bêbados pelos bares e intervir em conflitos de vizinhos. O principal desafio para um cidadão, além de suportar o clima duro, parecia ser o de não morrer de aborrecimento. Nesse sentido, por sinal, há um lado sombrio como os céus de inverno pairando sobre a sociedade norueguesa. Por causa daqueles inexplicáveis desvãos da alma humana, paradoxalmente alimentados no ócio da prosperidade, a Noruega ostenta um dos maiores índices de suicídio do mundo. Em 2009, foram registrados 573 casos, representando 1,4% das mortes ocorridas no país, enquanto os homicídios não passam de 0,1% do total. Dados como esses acabam emprestando um sentido local à obra do principal pintor da história da Noruega, Edvard Munch (1863-1944), gênio que teve a solidão, o desespero, doenças e morte como temas de seus quadros.

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MAIS ABERTURA
O primeiro-ministro Jens Stoltenberg recusa um Estado policial,
não muda o sistema penal do país e promete democracia

Os sinais de tormento mental deixados por Breivik sucumbiram às intenções declaradas de forma contundente pelo assassino num documento de mais de 1.500 páginas na internet. Ele se diz membro da milícia “Novos Pobres Cavaleiros de Cristo”, uma facção racista criada em Londres, em que “templários modernos” declaram guerra ao islamismo. Racista hidrófobo, Breivik cita o Brasil como prova de que a miscigenação acaba com as qualidades de um povo. Ele alega ter conexões com os movimentos nacionalistas que brotam hoje como potente força política pela Europa. Com a crise econômica apertando o continente, esses perseguidores de imigrantes vivem um momento de esplendor, sentindo-se estimulados à violência. “O multiculturalismo fracassou completamente”, declarou a chanceler alemã Angela Merkel, com apoio entusiasmado do primeiro-ministro britânico David Cameron e do presidente francês Nicolas Sarkozy. Como se vê, o extremismo político xenófobo deixou de ser tabu para ingressar em salões mais requintados.

No front interno, Anders Behring Breivik integrou por alguns anos o Partido do Progresso, agremiação nacionalista, defensora de velhos valores. Na última eleição, o partido conseguiu 23% dos votos, atraindo gente saudosa de uma Noruega “menos complexa”, quando a convivência com estrangeiros era coisa rara. Desde meados de 1990, o número de imigrantes dobrou no país, que passou a receber levas de trabalhadores da África, do Leste Europeu e da América Latina. Em 2009, a Noruega já tinha 459.346 imigrantes, quase 10% da população. Entre 100 mil e 150 mil são muçulmanos, conforme estimativa do Conselho do Islã norueguês. A presença expressiva de estrangeiros pode ser comprovada até mesmo na lista ainda incompleta dos mortos da ilha de Utoya. Entre nomes comuns na Noruega, como Gunnar, Silje e Tround, aparecem também a somali Jamil Yasin, a georgiana Talita Liparteliani e o norueguês Ismar Haj Ahmed, um rapaz de 20 anos, de pele acobreada e brilhantes olhos azuis.

Ao eleger os jovens de Utoya como alvo, Breivik deixou claro que pretendia atacar direto o coração do sonho social-democrata norueguês. Desde os anos 1950, todos os dirigentes do dominante partido trabalhista passaram pelos acampamentos de verão desta pequena ilha. Tradicionalmente, é ali que a juventude social-democrata encontra-se com os calejados dirigentes do partido, numa celebração que se tornou um dos pilares da vida política da Noruega. Breivik, assim, tentava eliminar a próxima geração das “elites multiculturais” que ele acusa de facilitarem a islamização do país. É provável, porém, que o terrorista tenha um resultado oposto ao pretendido. O próspero laboratório do Estado-providência que é a Noruega não está disposto a mudar em função de um assassino. O governo anunciou reformas para aprimorar serviços de inteligência antiterror, mas se recusa a pensar num Estado policial ou a radicalizar seu sistema penal. “Nossa resposta é ainda mais democracia, mais abertura”, disse o primeiro-ministro Jens Stoltenberg. Acuada, a incendiária líder do Partido do Progresso, Siv Jensen, se viu obrigada a declarar: “Eu concordo.”  

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