Assista ao vídeo e saiba o que elas pensam, como vivem e como conseguiram lidar com a perda de seus filhos :

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TRAUMA
Camila, 27 anos, interrompeu a gestação de um
feto anencéfalo e decidiu não ter mais filhos
 

A paulistana Camila Mo­reira Olímpio, 27 anos, deu pulos de alegria quando engravidou. Antes de completar três meses de gestação, sua casa já estava abarrotada de roupinhas de bebê. O enxoval era todo rosa porque ela nunca teve dúvidas de que a criança que carregava no ventre era uma menina. Até o nome estava escolhido: Stacy. Com o berço e o guarda-roupa instalados no quarto, Camila e o marido foram construindo sonhos. “Daí veio a desilusão. Fui fazer o ultrassom e o médico disse que o meu bebê não tinha calota craniana nem massa encefálica”, lamenta Camila. “Desci da maca e saí correndo do posto de saúde. Parei na beira da avenida. Ali, vi o meu castelo desabar.” Ela descobriu que a criança que tanto amava era mesmo uma menina. Mas constatou, também, que Stacy não sobreviveria porque sofria de uma grave má-formação fetal chamada anencefalia. Uma anomalia congênita irreversível e incompatível com a vida.

“E agora, o que eu faço?”, perguntou aos médicos. Eles explicaram que levar a gravidez adiante lhe traria mais riscos do que numa gestação comum. Camila ficou dez dias enfurnada em casa. Não abria a janela, não tomava banho, não penteava o cabelo, não comia, não levantava da cama. “Entrei em depressão. Estar grávida e saber que não teria minha filha comigo estava me matando”, lembra. “Se eu não antecipasse o parto, perderia a chance de ter outro filho porque eu morreria junto.” Camila decidiu se valer de uma liminar concedida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello, que permitia que grávidas de anencéfalos fizessem aborto. Conseguiu realizar o procedimento no 5º mês de gestação. Ela foi uma das cerca de 60 beneficiadas entre 1º de julho e 20 de outubro de 2004, período em que a decisão provisória vigorou. Começava ali uma batalha jurídica entre grupos de defesa dos direitos humanos e entidades de cunho religioso. Esse embate, no entanto, pode terminar em breve. Em agosto, o STF deve julgar uma ação proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), que reivindica a legalização do aborto em casos de anencefalia.

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DEFESA
A antropóloga Debora Diniz luta pelos direitos das mulheres

“Obrigar uma mulher a passar meses, entre o diagnóstico e o parto, dormindo e acordando sabendo que não terá aquele filho, é impor a ela um imenso sofrimento inútil. Isso viola o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana”, afirma o advogado Luís Roberto Barroso, da CNTS. “É uma situação equiparável à tortura. Interromper ou não a gestação deve ser uma opção da mulher e de seu médico. O Estado, o Judiciário ou quem quer que seja não têm o direito de interferir nessa decisão.” Barroso fundamenta a ação em mais dois pilares. Primeiro, alega que a interrupção da gestação de um anencéfalo, tecnicamente, não pode ser considerada aborto porque o feto não é uma vida em potencial. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o que define a morte é a falta de atividade cerebral e, como o anencéfalo não tem cérebro, ele seria um natimorto. Um dos argumentos dos grupos contrários é que, caso a gestação chegue aos nove meses, os órgãos do bebê podem ser doados. Mas nem a OMS nem o Conselho Federal de Medicina recomendam a doação porque esses órgãos não são de boa qualidade.

A outra tese de Barroso é que a lei brasileira permite o aborto em duas ocasiões: se a gravidez é resultado de estupro ou se há riscos para a mãe. “Interromper a gestação de um feto anencefálico é menos do que nas duas situações já previstas pelo Código Penal, pois tanto no caso de estupro quanto no de riscos para a mãe, o feto tem potencialidade de vida”, relata o advogado. “O nosso Código Penal não contempla a hipótese do feto inviável porque foi elaborado em 1940, quando o diagnóstico da anencefalia não era possível.” Paulo Fernando da Costa, vice-presidente da Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família, entidade católica das mais fervorosas no combate à ação da CNTS, contesta. “Não podemos condenar uma pessoa à morte. Se essa proposta for aprovada, será aberta uma janela para a legalização completa do aborto”, afirma. “Existem projetos sobre o tema tramitando no Congresso Nacional desde 1991. O que esses grupos feministas não conseguem no Legislativo, tentam via Judiciário”.

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IGREJA
Dom Petrini, bispo da CNBB, é contrário ao aborto

Costa conta que a Associação fez um filme sobre Marcela de Jesus – uma menina do interior paulista, que morreu em agosto de 2008, com 1 ano e 8 meses – e está entregando aos ministros do STF cópias do DVD. A história de Marcela se tornou uma das principais bandeiras de grupos religiosos na cruzada antiaborto. “É uma bandeira desumana. A Igreja Católica explora esse caso para mistificar uma tragédia. Marcela não era anencéfala. Tinha merocrania”, garante o geneticista Thomaz Gollop, professor da Universidade de São Paulo e coordenador do Grupo de Estudos sobre o Aborto. O médico explica que o que distingue esse quadro da anencefalia é a presença de um cérebro muito rudimentar – um pouco mais de massa encefálica, coberta por uma membrana. Isso faz com que o indivíduo sobreviva um pouco mais. Mas não faz com que tenha cérebro nem que interaja. “Quando a anencefalia é diagnosticada, não estamos discutindo a vida, mas a morte certa”, diz Gollop. “Tenho esperança de que, assim como em decisões recentes, o Supremo respeite a laicidade do Estado”.

Além de refutar a legitimidade do Supremo, justificando que a Corte tem se debruçado sobre questões que seriam de competência do Legislativo, a Associação questiona a postura do ministro Marco Aurélio. “Entramos com uma representação na Procuradoria-Geral da República alegando a suspeição do ministro. Anexamos reportagens em que ele manifestou opiniões favoráveis ao aborto”, declara Costa. Desde 1989, mulheres têm sido autorizadas pela Justiça a interromper a gestação de fetos anencéfalos. A diferença agora é que, se o Supremo acolher a proposta da CNTS, elas não precisarão mais recorrer aos tribunais e serão poupadas de meses de angústia aguardando uma sentença. Os hospitais públicos, assim como os planos de saúde, terão de lhes oferecer a assistência necessária.

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“O tempo vai passando, a ferida vai cicatrizando,
mas jamais vou esquecer que perdi um filho”

Michele Gomes de Almeida, 30 anos, caixa de loja

Camila afirma que, mesmo com a liminar de Marco Aurélio, batalhou para conseguir um hospital que aceitasse fazer o aborto. “Entrei em trabalho de parto no dia 18 de outubro. No dia 20, a liminar caiu”, lembra. “Foi um desespero. Algumas mulheres que estavam internadas foram mandadas de volta para casa. Se eu saísse de lá, grávida, não resistiria. Ia enlouquecer.” O casamento de Camila terminou um ano depois. Ela desistiu de tentar ser mãe depois de descobrir que é alérgica aos comprimidos de ácido fólico, uma vitamina do complexo B essencial para prevenir má-formação fetal. “Tenho muito medo de passar por tudo de novo, por aquela desilusão”, diz. “Minha filha nasceu viva. Morreu dez segundos depois. Eu não quis ver, preferi guardar a imagem que eu tinha dela na minha cabeça”. Camila leva uma vida pacata. Divide uma casa simples em Cotia, na Grande São Paulo, com duas amigas e os três filhos delas. Não é de curtir baladas. Passa a maior parte do tempo trabalhando como demonstradora de café num supermercado.

A pernambucana Michele Gomes de Almeida, 30 anos, passou por um drama semelhante ao de Camila. “Ela foi ao Supremo numa das audiências públicas sobre anencefalia”, afirma a antropóloga Debora Diniz, pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. “No parlatório, disse para o Marco Aurélio: ‘Eu sou quem você protegeu’. Aquilo foi muito forte.” Michele falou diante de um plenário lotado que se submeteu a um tratamento médico porque não podia engravidar – e, quando conseguiu, descobriu que o menino tinha anencefalia. “A vida humana é permanentemente um drama”, prega dom João Carlos Petrini, presidente da Comissão para a Vida e a Família da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. “É verdade que gerar um filho assim é um sofrimento para a mãe e também é evidente que a criança vai morrer, mas não podemos querer aliviar esse sofrimento a qualquer preço.”

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“Interromper era a melhor opção. Não queria sentir
o meu neném mexer e, depois, ter de enterrá-lo”

Érica Souza do Nascimento, 22 anos, gerente administrativa

“Só quem passa por isso entende o tamanho da dor. Era um bebê amado, antes mesmo de ser gerado”, contou Michele à ISTOÉ. “Passei por muita humilhação. Cheguei a perguntar ao meu marido se ele queria se separar, porque eu não poderia dar um filho a ele. As pessoas me tratavam como se eu tivesse um animal na barriga. Eu precisava fazer alguma coisa para aquietar a minha dor. O tempo vai passando, a ferida vai cicatrizando, mas jamais vou esquecer que perdi um filho.” Michele fez o aborto na 16ª semana de gestação. Ela é casada há uma década com o segurança Ailton, 31 anos. Hoje os dois estão felizes. Michele engravidou mais duas vezes. Teve Nicolly, 6 anos, e Yasmin, 3. “A gravidez de Nicolly foi atribulada. Só fui relaxar depois dos sete meses. Na da Yasmin, só sosseguei depois de fazer o ultrassom morfológico.”


O medo de que alguma coisa dê errada é comum às gestantes. Quando a mulher tem um passado traumático essa sensação é multiplicada. Foi assim com a paulista Érica Souza do Nascimento, 22 anos. Ela fez a antecipação do parto dias antes de Camila, na 17ª semana de gestação, no mesmo hospital. “Foi complicado emocionalmente. Imagina ter consciência de que seu filho vai nascer e morrer, e você não vai poder fazer nada”, diz Érica. “Não tive dúvidas de que interromper a gestação era a melhor opção. Não queria sentir o meu neném mexer e, depois, ter de enterrá-lo.” Durante um bom tempo, Érica não conseguia ver crianças. Doía. Machucava. “Isso só passou quando engravidei de novo”, conta Érica, aos prantos. “No ultrassom, eu e minha mãe estávamos apreensivas. A gente queria perguntar se a cabecinha do neném estava bem, mas não tivemos coragem. A gente esperou o laudo sair para ver o que estava escrito. Foi uma das melhores sensações que tive na vida.” Yasmin, uma menina de 5 anos toda serelepe, é a alegria dos pais. “Foi ela que me ajudou a esquecer”, garante Érica. “Minha filha é tudo na minha vida.” 

DIAGNÓSTICO DEVA STADOR

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“Não estamos discutindo a vida, mas a morte certa”
Thomaz Gollop, geneticista, ginecologista, obstetra e professor da USP

O geneticista Thomaz Gollop participou das audiências públicas no STF em que se debateu a interrupção da gestação em casos de anencefalia. Médico com quatro décadas de experiência, ele falou à ISTOÉ:

ISTOÉ – O diagnóstico da anencefalia, por meio de ultrassom, é seguro?
Thomaz Gollop – É 100% seguro. Pelo menos 10 mil brasileiras conseguiram autorização judicial para interromper a gestação de fetos anencéfalos. A primeira autorização foi dada em 1989. Mas se o STF aprovar a interrupção da gravidez nesses casos, a mulher que optar por isso não terá mais de recorrer aos tribunais e sua decisão não será revestida de culpa, pois ela não estará fazendo nada ilegal. Obrigar uma mulher a manter uma gravidez de um feto inviável é submetê-la à tortura.

ISTOÉ – Como outros países tratam a questão da anencefalia?
Gollop – O aborto é livre em quase todos os países desenvolvidos. A discussão sobre a interrupção da gestação de fetos anencefálicos, em separado, é uma originalidade brasileira porque aqui esse debate é muito complicado por causa de questões religiosas.

ISTOÉ – A falta de atividade cerebral de um anencéfalo pode ser comparada à morte encefálica de um adulto?
Gollop – Pode sim. Desde os anos 60, a doação de órgãos de indivíduos com morte cerebral é permitida. Quem não tem cérebro, como é o caso do anencéfalo, é um natimorto. Estamos, portanto, discutindo novamente a morte. E não a vida. É por isso que costumamos falar em antecipação do parto, e não em aborto.

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