Puxar a cadeira e ver a vida passar da calçada. O hábito ainda presente nas pequenas cidades brasileiras era muito comum na tórrida Alicante, no Sudeste da Espanha. Lá moravam as tias do artista plástico, publicitário e cineasta José Zaragoza, 76 anos, o Z da agência DPZ, que ainda guarda na memória de suas férias de infância a reunião das mulheres nas largas calçadas, jogando conversa fora enquanto enrolavam as fibras de cânhamo para fazer alparcatas. A imagem é tão vívida que Zaragoza a reconstituiu de memória em um desenho de 1976, da série justamente intitulada Memórias. O conjunto ganhou destaque especial na retrospectiva Zaragoza – meio século – revisão, em cartaz no Museu Brasileiro de Escultura, em São Paulo, acompanhada do lançamento do livro homônino, fartamente ilustrado. “Quando cansava do figurativo, ia para o abstrato; quando cansava do abstrato, voltava ao figurativo”, conta o espanhol, explicando a liberdade com que saltou de estilos e temas em cinco décadas de carreira. “Mas o forte da minha obra sempre foi mesmo o desenho.”

Daí a importância dada ao segmento em papel, que traz também a sarcástica série de socialites e colunáveis, que valeram do falecido costureiro Dener o elogio: “Foi você quem fez isso? Parabéns.” E também a de desenhos eróticos, mostrada originalmente em número de 600 no casarão localizado no mesmo lugar onde hoje descansam as arrojadas linhas do MuBe. Na parede com os rostos desfocados dos familiares, aparece ainda um retrato de seu pai. Zaragoza diz que não foi difícil captar-lhe os traços de cabeça. “Foi fácil. Meu pai era careca, usava gravata e enchia a cara todo dia. Basta observar para se ver um copo, ali do lado.” Apesar de os pais morarem em Barcelona, Zaragoza nasceu em Alicante. “Toda vez que minha mãe ia dar à luz, era levada para a parteira de lá”, conta com humor. “Depois, na Guerra Civil Espanhola, Franco mandava jogar tanta bomba
em Barcelona que meus pais acharam mais seguro me mandar para a casa
dos meus avós.”

O ódio ao “generalíssimo”, herdado dos pais “rojos” (vermelhos), foi o que levou Zaragoza a se mandar para o Brasil, em 1952, depois de passar um tempo na Marinha. Por ser artista, fazia retrato das famílias dos militares. “Como Goya, eu me vingava tornando-os um pouco feios”, lembra. Zaragoza sabe exatamente o dia em que chegou ao Brasil, no porto de Santos. “Era uma sexta-feira e logo fui procurar uma pensão na Vila Prudente.” Na segunda, já estava empregado, no laboratório Fotolabor, de Werner Haberkorn. Sua primeira tarefa foi retocar fotos do cantor Francisco Alves, morto naquela semana, para ilustrar santinhos vendidos na esquina. “Era uma espécie de photoshop a lápis”, conta. Na seqüência, veio a publicidade. “Aí me meti com a propaganda. Ou foi ela que gostou de mim?”, pergunta. Zaragoza lembra dessas passagens enquanto percorre a grande retrospectiva de 140 obras, algumas luminares, como o retrato do filho Frê aos cinco anos. O passeio cronológico, por temas variados, é extremamente agradável. Em termos, já que torna-se tenebroso, segundo a melhor tradição espanhola, diante das gigantescas telas das séries O poder (1983), Não matarás (1986) e Pátria amada, idolatrada, salve, salve! (1989). A primeira, com forte influência do irlandês Francis Bacon, foi feita pensando no mundo dos negócios. Mas poderia bem ser um retrato do patético teatro das CPIs. “O tempo se encarregou disso”, conta Zaragoza. O mesmo tempo que agora faz justiça ao dar coerência e sentido a uma obra sempre inspirada.