O talento da tripulação do Brasil 1, o superveleiro que abriu, no sábado 5, nas águas escuras do balneário espanhol de Sanxenxo, a primeira participação de um barco brasileiro numa Volvo Ocean Race, maior competição de vela do planeta, é inquestionável. Um dos exemplos do poder: nove medalhas olímpicas estão “embarcadas” – cinco do comandante Torben Schmidt Grael, considerado por muitos especialistas o mais completo velejador da atualidade (dois ouros, uma prata e dois bronzes), três do trimmer (regulador de velas) Marcelo Ferreira (dois ouros e um bronze) e um bronze do proeiro Henrique Kiko Pelicano.

Mas nada funcionaria para o gigante de velas azuis a amarelas não fosse o trabalho até agora impecável do time de terra do projeto. “Dedico a regata à turma da terra”, disse Torben antes de festejar no pódio o ótimo segundo lugar na regata costeira (in shore) do sábado 5. “A sintonia entre a tripulação e o descontraído grupo de terra do Brasil 1 parece absoluta”, reconhece o diretor da Volvo Ocean, o australiano Glenn Bourke.

Oito dos 13 “fuzileiros” são brasileiros: Ricardo Ermel, o diretor técnico Horácio Carabelli, o organizador de contêineres Ronald Seifert, o reparador de velas Dudu Melcher, os especialistas em fibra de carbono Sérgio dos Santos e Álvaro Souza, o pintor Renato Guedes e o responsável pela manutenção Ricardo Freitas. Carabelli, responsável pela construção do Brasil 1 – um projeto de 13,4 milhões de euros (US$ 15,8 milhões), entre eles US$ 3 milhões patrocinados pelos ministérios do Esporte, do Turismo e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio –, abandonou a família em Florianópolis no ano passado para “se casar” com o Brasil 1 no estaleiro ML, em Indaiatuba (SP). Pensava em se limitar aos bastidores, mas, com a descoberta de que o neozelandês Martin Carter sofre de diabetes, pegou no pesado durante toda a preparação e apresentou-se para velejar na regata de abertura. Teve ótima performance e vai correr até a Cidade do Cabo. “Chegando lá, volto a ralar no chão”, adianta. Ermel é outro que não deixa nada passar. Ao analisar o mapa da marina antes da chegada do circo, percebeu que o local mais rejeitado pelos adversários era justamente o mais próximo do barco na água. Garantiu facilidades e, de quebra, uma área 60% maior do que a dos outros.

O espaço que sobra é bem utilizado – com boas churrascadas. Ermel sentiu que havia isolamento e esconde-esconde entre os times. Para quebrar o clima de guerra de nervos, chamou os tripulantes dos outros barcos para queimar uma carne. A churrasqueira do Brasil 1 ficou famosa. Entre uma e outra lasquinha, um detalhe importante escapulia de um adversário com o espírito desarmado por goles de caipiiruinha. A tática de bom anfitrião serviu também para conquistar um pescador local revoltado com a parafernália no seu pedaço. Ermel chamou-o para um acordo num desses churrascos. O pescador virou torcedor.

Ferramentas – Esse jogo de cintura navega ao lado da eficiência. Dudu Melchert, velejador em várias olimpíadas, deixou mulher, filhos e sua pousada em São Sebastião (SP) para um trabalho estratégico: cuidar das gigantescas
velas do Brasil 1. A Volvo Ocean permite que cada barco use 24 velas em toda a volta. O Brasil 1 já registrou 11 e a última será fichada em Melbourne, quando ainda faltarão sete pernas. “Depois, o jeito é costurar, reduzir, fundir uma com a outra, fazer mágica”, diz Melchert. A combinação de solidariedade e preparo da equipe beneficia até adversários. Na segunda-feira 7, dia de folga para o Brasil 1, Guedes e Santos ficaram acordados até as 4h30 da manhã para consertar o catamarã inglês Basilica, um dos cinco Extreme 40 pés que disputam uma competição paralela. Na mesma madrugada, Ermel e o restante do time de terra emprestaram ferramentas de precisão e ajudaram a diminuir o peso do bulbo da quilha do barco do concorrente australiano Premier Challenge, o consórcio mais pobre da atual edição. Equipamentos são, aliás, um dos fortes do time. Há dois jogos de ferramenta imensos, completos, divididos em quatro contêineres.

Completam o grupo os neozelandeses Carter, o do diabetes, e os especialistas em fibra Tim Blosse e Clayton Holmes, e os franceses Hervé le Quilliec, diretor de logística, e Olivier Cusin, responsável por outra tarefa-chave: cuidar dos dois quilômetros e meio de cabos incorporados ao barco. Depois da Cidade do Cabo, os sete veleiros irão para Melbourne (Austrália), Wellington (Nova Zelândia), Rio de Janeiro, Baltimore, Annapolis e Nova York (Estados Unidos), Portsmouth (Inglaterra), Roterdã (Holanda) e Gotemburgo (Suécia). Haverá tempo suficiente para os deuses dos mares abertos reconhecerem tanto esforço e encherem as velas do Brasil 1.