As cenas de carros em chamas, vitrines estilhaçadas e de depredação generalizada correram mundo. A explosão súbita de violência transformou Paris em cenário para batalhas urbanas. Era maio de 1968 quando uma rebelião estudantil paralisou o governo e inspirou movimentos de contestação nos quatro continentes. Trinta e sete anos depois, os subúrbios parisienses se transformaram no epicentro da produção em série de cenas tão ou mais impactantes quanto as de 1968. Desta vez, no lugar de intelectuais imberbes clamando por mudanças nos costumes estão jovens excluídos dos subúrbios, em geral descendentes de imigrantes de antigas colônias francesas na África. Desde o dia 27 de outubro, pelo menos 7.400 carros foram incendiados em todo o país, onde 25 regiões foram autorizadas a decretar estado de emergência e toque de recolher. Para conter a revolta sem líderes nem palavras de ordem, o governo francês desencavou na semana passada uma lei de 1955, promulgada durante a guerra da Argélia, antiga colônia que conseguiu sua independência da França sete anos depois. A estratégia de contenção dos distúrbios, que chegaram a contaminar países vizinhos, prevê ainda a expulsão dos estrangeiros envolvidos em atos de vandalismo.

Embora não ataque a raiz do problema, as medidas emergenciais amenizaram a intensidade dos conflitos ao longo da semana passada. Na quinta-feira 10, quando 160 pessoas foram presas em toda a França, a contabilidade da crise registrava o incêndio de 463 veículos, contra 1.408 carros em apenas uma noite, na segunda-feira 7. Como garantia adicional, o chefe de polícia de Paris, Pierre Mutz, proibiu a venda de gasolina em recipientes, para dificultar a confecção de bombas incendiárias. Mutz trabalha com a possibilidade de que a calmaria relativa seja devido à preparação de um megaprotesto em Paris neste final de semana, quando os franceses comemoram o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). “Vários recados em sites e mensagens via celular foram repassadas nos últimos dias, falando da organização de ações violentas em Paris”, alertou o chefe de polícia. Numa tentativa de neutralizar a transmissão de mensagens instigadoras da violência por meios eletrônicos, a polícia tirou do ar três blogs (diários virtuais), um deles mantido por um garoto de apenas 14 anos.

Os distúrbios explodiram da noite para o dia, em Clichy-sous-Bois, um subúrbio do noroeste de Paris com 28 mil habitantes. Na noite de 27 de outubro, dois adolescentes, aparentemente fugindo de uma batida policial, entraram num beco sem saída que terminava em uma subestação de eletricidade. Nela, Banou, 15 anos, de Mali, e Ziad, um tunisiano de 17 anos, morreram eletrocutados. Um amigo deles sobreviveu, ferido gravemente. A morte dos adolescentes funcionou como um rastilho de pólvora, mesmo porque os ânimos já estavam exaltados. Dois dias antes, em visita a outro subúrbio de Paris, o ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, havia sido recebido a pedradas e revidado classificando seus jovens agressores como “escória”.

A administração da crise que colocou a Europa em sobressalto reflete uma batalha surda, travada no interior do governo francês, por causa da sucessão do presidente Jacques Chirac. De um lado está o linha-dura Sarkozy: “A polícia garante a ordem republicana. Se ela não fizer isso, qual ordem a sucederá? A das máfias ou a dos integralistas?” Do outro lado está o primeiro-ministro Dominique de Villepin, que privilegia o diálogo e tem se reunido com líderes comunitários e religiosos. Na semana passada, ele anunciou um plano educacional para amenizar os problemas sociais que estão na base dos distúrbios. Dos 62,4 milhões de habitantes da França, pelo menos 10% são imigrantes e seus descendentes. Em entrevista à revista alemã Der Spiegel, o eurodeputado Daniel Cohn-Bendit, líder da rebelião estudantil de 1968, afirmou que o problema dos distúrbios não será solucionado com um simples plano de ação. “É preciso resolver o problema dos guetos”, disse. “Existem famílias que já por duas gerações não conhecem outra situação que não seja o desemprego.” Famoso pelo discurso incendiário à frente das barricadas de Paris, Cohn-Bendit firmou-se como líder numa época em que os incluídos queriam aumentar as margens de tolerância do sistema, revolucionando seus costumes. Hoje, a revolta é dos excluídos, que brigam para entrar no sistema.