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RISCO
A Marinha resgata os pescadores: onda varreu o barco
e provocou pane elétrica. Eles ficaram sem motor e rádio

"Pensaram em levar o barco para o fundo, cortar o lingote (peça que estabiliza a embarcação) para afundar com todo mundo dentro." A frase do pescador Cristiano Pereira de Souza, 33 anos, refere-se ao suicídio coletivo aventado por alguns dos seis pescadores que ficaram 22 dias à deriva em alto-mar. Sem comida e água potável, todos já deliravam e a alternativa da morte não parecia absurda. “A boca colava. Eu lavava com água do mar para descolar. Até chupei olho de peixe”, disse à ISTOÉ. Para piorar, não chovia. Daí a ideia de beber a própria urina, dada por Maicon Lima dos Santos, 24 anos, o primeiro a ter coragem de ingerir. “Fui o último a beber. Dá sono. É horrível”, conta Souza. Ele teve um papel importante no desfecho da história da embarcação que saiu do Espírito Santo em meados de maio e foi colhida por uma enorme onda no fim do mês, já no Rio de Janeiro, a qual comprometeu o motor e o sistema elétrico da traineira. “Parou tudo. Tentamos falar com o rádio, mas não conseguimos”, relembra o pescador. O único celular a bordo também não funcionava. O grupo foi resgatado na segunda-feira 27, entre os Estados do Paraná e Santa Catarina, por um navio italiano. Souza era, então, o único que ainda tinha forças para levantar o braço e pedir ajuda. “Fiquei igual a um louco, balançando”, conta.

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"A boca colava. Eu lavava com água do mar
para descolar. Até chupei olho de peixe"

Cristiano de Souza, ao lado da mulher, Dilcileia

No início, os náufragos economizavam a água potável e também bebiam a do mar. A partir do 11º dia, nada mais havia no barco para ser ingerido. “Bebemos até a água do motor. Depois, não teve jeito. Tive que beber urina”, contou Gilney Baiense, 56 anos, chorando, numa cama do hospital Salgado Filho, no Rio, onde se recuperava. A falta de comida foi suprida, nos primeiros dias, com os peixes armazenados para vender e a pouca ração que costumam levar. Porém, a carne logo se deteriorou e os pescadores não tinham mais instrumentos para capturar peixes. A fome era grande. À noite, o frio era o maior inimigo. Eles dormiam amontoados para se proteger do vento.

No domingo 26, véspera do resgate, enfim uma boa-nova: a chuva caiu e aliviou a sede. Foi o prenúncio de uma maré favorável. A traineira foi avistada pela tripulação do navio Marola, que vinha do Rio Grande do Sul. Os seis estavam muito fracos, e a retirada do barco foi difícil. Com o mar agitado, o Witamar III se chocou várias vezes com a grande embarcação, e acabou afundando. Felizmente, sem levar nenhum deles.“Foi Deus que olhou por nós”, repetia Leandro José Martins, 34 anos, ainda em estado de choque.

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"Bebemos até a água do motor. Depois,
não teve jeito. Tive que beber urina"

Gilney Baiense

Ao desembarcarem no Rio, todos estavam desidratados. Zenildo de Oliveira Pacheco, 31 anos, mestre do barco, chegou a apresentar quadro de insuficiência renal. Entre o dia 8 de junho, data esperada para a volta do barco a Cabo Frio, e o dia 27, quando foram encontrados, os parentes viveram o sofrimento de não saber o destino deles. A rotina era de ligações para as unidades da Marinha em busca de informações. O terror tomava conta quando um corpo era visto em águas próximas. Na busca pelos pescadores, foram encontrados quatro corpos de desconhecidos. “Muitos vizinhos já me desacreditavam. Mas nunca perdi a esperança”, conta Dilcileia Vital, 23 anos, mulher de Souza e promotora de vendas em Marataizes (ES), onde vive a maioria dos pescadores.

A Capitania dos Portos abriu inquérito para apurar as causas do naufrágio. Segundo o órgão, foram feitas buscas nos cinco primeiros dias após a comunicação do desaparecimento, mas o desvio da rota e as más condições do mar prejudicaram os trabalhos. O dono do barco, Pedro Gilson de Araújo, garante que a embarcação tinha todas as condições de segurança e era equipada com GPS, mas a ressaca impediu o funcionamento dos equipamentos. “Todos são experientes e estavam habilitados para navegar. O barco tinha sido vistoriado. Foi uma ressaca brava”, afirma. Para manter a esperança, os pescadores se davam as mãos e rezavam a Ave-Maria, sempre ao final do dia. Outra força era a lembrança dos mineiros chilenos que ficaram presos no subsolo de uma mina durante 68 dias, no ano passado, e saíram vivos. “Assim como eles, eu acreditava que ia sair dali vivo”, disse Souza, que pretende escrever um livro sobre o que se passou. 

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