Você é feliz? Em algum momento, todos nós já tivemos de responder a essa pergunta, feita por amigos íntimos, familiares e, às vezes, por nós mesmos. Em breve, porém, será comum ouvir essa complicada questão de recenseadores governamentais e profissionais de recursos humanos. É que a felicidade já pode ser medida e autoridades e especialistas de todo o planeta, inclusive no Brasil, estudam como transformá-la em indicador capaz de determinar políticas públicas e relações corporativas. A tendência, que põe a praticidade dos resultados financeiros em segundo plano e a complexa subjetividade do bem-estar social em primeiro, tem adeptos de peso.

FAMÍLIA Vínculos fortes e tempo para o lazer
 são fundamentais para uma vida feliz

O presidente francês, Nicolas Sarkozy, é um deles. Em batalha contra o que chama de “culto ao mercado” e aos resultados econômicos positivos a qualquer custo, ele apoia a revisão dos indicadores que determinam o que é desenvolvimento. “Uma revolução nos aguarda”, disse o governante, sobre a perspectiva de mudança dos referenciais que medem o progresso. Desde 2008 Sarkozy encabeça o movimento pela revisão dos parâmetros usados para medir o desenvolvimento de uma sociedade. Foi ele quem criou uma comissão com estrelas da economia, como o Prêmio Nobel de 2001, o americano Joseph Stiglitz, além de cientistas sociais e matemáticos, para avaliar as deficiências de um dos índices de desenvolvimento menos plurais, mas mais usados no mundo: o Produto Interno Bruto (PIB).

Ao final dos estudos, em setembro, chegou-se à conclusão de que o PIB, a soma de tudo que é produzido em um país durante um ano, tinha pontos cegos impossíveis de ignorar. O maior deles era medir a riqueza sem levar em conta um dos principais objetivos de vida de boa parte dos seres humanos: ser feliz e não necessariamente rico. “Alguns dos fatores que fazem a vida valer a pena não estão à venda nem podem ser contabilizados com instrumentos monetários”, concluiu Stiglitz e sua equipe no relatório final do estudo, que soma mais de 200 páginas. Mas, se o documento condena o PIB, qual índice ele propõe? Afinal, quais seriam esses “fatores que fazem a vida valer a pena”? Existe mesmo algum jeito de medi-los? A resposta está encravada entre a Índia e a China, no limite oriental das Cordilheiras do Himalaia, no reino do Butão.

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Lá, em 1972, o rei Jigme Singye Wangchuck, ao assumir o trono deixado por seu falecido pai, resolveu criar um método para medir a felicidade de seus 600 mil súditos. Para isso, ele abriu o Centre for Bhutan Studies e se empenhou na elaboração de um questionário que, literalmente, mediria a felicidade da população butanesa. Foi o marco zero do que viria a ser chamado de iniciativa “Gross National Happiness”, ou Felicidade Interna Bruta (FIB). “É um projeto bastante objetivo”, diz a senadora Marina Silva (PV-AC), um dos palestrantes na abertura da 5a Conferência Internacional do FIB, que discute o assunto e suas aplicações no Brasil e no mundo até a segunda-feira 23 em Foz do Iguaçu, no Paraná. “Não estamos falando de sair medindo qualquer coisa de forma abstrata, romântica e subjetiva. Eles criaram um método”, diz ela. Você gosta da sua vida? Você tem perdido o sono por ansiedade? Você conversa com seus filhos? Você conhece as lendas de seu povo e a história de seus antepassados? Você recicla? Essas são algumas das mais de 270 questões organizadas em nove grandes pilares (leia quadro abaixo) que hoje compõem o recheado questionário butanês para diagnosticar a Felicidade Interna Bruta do reino.

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ENTUSIASTA Sarkozy, presidente da França,
montou uma equipe de ponta para identificar os
limites de índices como o PIB

Desde os anos 70, os levantamentos do FIB substituíram todas as pesquisas locais e é a partir da discussão de seus resultados que se estabelecem uma agenda pública e o ritmo dos investimentos econômicos no país. “Com exceção da renda, o questionário aborda todos os aspectos da vida do cidadão”, disse Tshokey Zangmo, pesquisadora do Centre for Bhutan Studies, à ISTOÉ. Mas abordar os interesses e angústias de uma população de 600 mil pessoas que vivem no Himalaia é uma coi sa. De 191 milhões, como é o caso do Brasil, é outra bem diferente. É aí que entram as experiências para adaptar o índice FIB à realidade brasileira. No País, existem algumas tentativas de adequação. A empresa Icatu-Hartford, por exemplo, que vende e administra fundos de investimento e planos de previdência, foi uma das primeiras a criar uma versão do teste no Brasil. Eles montaram um questionário se baseando em quatro grandes pilares conceituais corpo, mente, bolso e mundo. “Nossa intenção não era fazer um teste definitivo de felicidade”, explica Aura Rabelo, diretora de marketing da empresa e uma das idealizadoras do projeto. Segundo ela, a ideia foi criar uma versão do teste butanês para ajudar as pessoas a repensarem suas vidas.

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DINHEIRO Investir no que dá prazer é tão relevante
quanto planejar a segurança financeira para o futuro

Colocado no site da empresa, o questionário tem recebido uma média de 180 mil visitas mensais, com muitos participantes voltando para registrar a evolução de seus índices de felicidade. “Com o teste, queremos deixar uma pergunta no ar: adianta aprender a ser um profissional eficiente e bem-sucedido se o preço disso é desaprender a ser feliz?”, teoriza Aura. De certa forma é essa mesma pergunta que a psicóloga e antropóloga americana Susan Andrews, coordenadora da Organização Não Governamental (ONG) Instituto Visão Futuro, tem feito. Com a diferença de que a instituição que ela coordena se muniu de vários instrumentos para ajudar a respondê-la. De uma ecovila em Itapetininga, no interior de São Paulo, ela comanda um exército de voluntários espalhados por empresas, universidades e centros de estudo na corrida para criar o primeiro questionário brasileiro da felicidade. Considerada a embaixadora do FIB no Brasil, Susan tem contato direto com representantes internacionais do reino de Butão e é a idealizadora da 5a Conferência Internacional do FIB. “Nossa ideia é montar um teste completo e único para todo o País, que tenha uma margem de erro inferior a 5%”, diz Susan.

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MUNDO Aumentar o contato com a natureza ajuda na percepção da
importância de um meio ambiente em equilíbrio

Apesar do rigor com a elaboração do questionário, a psicóloga entende que ele é apenas uma pequena parte do conceito do FIB. Para Susan, o trunfo desse tipo de medida é que ela não se esgota em um número, como acontece com o PIB. A riqueza da experiência também está na mobilização para aplicação das questões, por exemplo. “O que podia parecer secundário, que é preparar e discutir os resultados do questionário, ganhou importância durante a execução dos projetos piloto”, afirma. Até agora, Susan e sua equipe contam três projetos piloto que usaram versões preliminares do questionário e da filosofia do FIB. O primeiro e mais amplo aconteceu em um bairro periférico de Campinas, no interior de São Paulo, chamado Campo Belo I. Lá, a aplicação do teste em 439 moradores trouxe revelações inusitadas sobre a felicidade de quem vive à margem da linha de pobreza. Campo Belo não tem asfalto, rede de esgoto, lazer, nem escolas suficientes. Até recentemente, não tinha posto de saúde. Mas mesmo com tantas carências, 64% dos habitantes do bairro se consideram felizes. Por quê? Entre os fatores que explicam a satisfação estão o grau de solidariedade, o bom relacionamento entre as famílias e o alto índice de fé. “Não tenho do que reclamar”, diz Júlio Ferreira das Chagas, potiguar de 71 anos que mora há 35 em Campo Belo I com a mulher, Luiza Ismael Ferreira. Na casa clara e ampla cercada por flores em que moram, filhos e netos se reúnem para animados churrascos. E Júlio se sente satisfeito. “Fui acolhido quando me mudei, fiz a minha parte e sinto que me dei bem”, afirma. Mas não é só em ambientes como o Campo Belo I que o teste faz importantes revelações.

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PIONEIRO Em 1972, o então rei do Butão, Jigme Singye Wangchuck,
criou uma fórmula para medir o bem-estar de seus 600 mil súditos. Nascia o FIB

Distante dali e em realidade oposta organizou-se o segundo projeto de utilização do questionário FIB. Dessa vez no universo empresarial, em parceria com a indústria de cosméticos Natura. “Sabemos que quem trabalha feliz é mais produtivo, então desenvolvemos uma versão do FIB para empresas”, diz Vicente Gomes, responsável pela divulgação da vertente corporativa do conceito. Ele conta que, nessa situação, há dois FIBs testáveis o EndoFIB e ExoFIB. O primeiro trata da felicidade entre funcionários, enquanto o segundo se concentra na felicidade de quem é cliente. Na Natura, a experiência foi de EndoFIB e envolveu 50 funcionários voluntários. “Foram cinco reuniões de mais de cinco horas cada uma, realizadas durante o expediente”, lembra a ouvidora da Natura, Estelita Thiele, que participou da iniciativa.

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SAÚDE Sentir-se bem fisicamente é essencial para estar
saudável emocionalmente. Vitalidade também é felicidade

Nos primeiros três encontros, que aconteceram no mês passado, Susan explicou a proposta geral do projeto para só depois aplicar o questionário, com 72 perguntas. Hoje a Natura está em fase de debate das conclusões. “Poder medir a eficiência de valores subjetivos é muito importante para nós”, diz Marcelo Cardoso, vice-presidente da empresa. “A felicidade dos nossos colaboradores sempre foi importante, agora vamos descobrir maneiras de aumentá-la.” Segundo ele, o piloto foi tão bem que a empresa estuda a possibilidade de, já em 2010, montar uma versão da experiência para seus seis mil colaboradores. O tipo de preocupação que Cardoso tem com seus funcionários é parecido com o que o prefeito de Itapetininga, Roberto Ramalho (PMDB-SP), parece demonstrar com seus munícipes. Foi na cidade que a terceira e última experiência do FIB no Brasil aconteceu. O exercício, fruto de parceria entre o município e o Instituto Visão Futuro, é a menina dos olhos de Ramalho. Entusiasta de índices alternativos, o executivo já havia feito uma avaliação do bem-estar da população de 150 mil habitantes de Itapetininga em 2008. Com testes baseados em 40 indicadores, distribuídos em sete categorias, ele tem usado os resultados para criar políticas públicas mais eficientes. “Quando fomos apresentados ao FIB, percebemos, de cara, que ele tinha tudo a ver com a nossa administração”, afirma Ramalho. Na cidade, o questionário foi adaptado e aplicado por adolescentes de escolas públicas em seus respectivos bairros. Cerca de 400 pessoas foram ouvidas. “Achamos que conseguimos respostas mais honestas e completas quando colocamos gente da própria comunidade para conduzir o levantamento”, explica Susan. Mas depender da comunidade para uma parte tão nevrálgica do exercício do FIB revela alguns limites do conceito.

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EMPRESARIAL Marcelo Cardoso, da Natura: a empresa
mediu o grau de satisfação dos funcionários

Ao que tudo indica, até o momento ainda não foi criada uma metodologia para aplicar o teste e discutir seus resultados em escala municipal, estadual e muito menos federal. “O FIB ainda é uma ferramenta de mobilização local”, reconhece Susan. Transportá-lo para uma escala maior exigirá um pesado investimento na capacitação de um novo tipo de recenseador, apto a perguntar o que os questionários propõem. “Estamos felizes com a relevância que o FIB ganhou”, revela Tshokey, do Centre for Bhutan Studies. “Mas ainda precisamos criar um conjunto de indicadores fortes o suficiente para dar conta do diagnóstico em grandes populações.” A crise financeira que correu o mundo entre 2008 e 2009 aumentou o interesse por novos termômetros sociais e econômicos. E isso pode acelerar a adoção do FIB em larga escala. Na Universidade de Campinas (Unicamp), por exemplo, a professora de linguística aplicada Salette Aquino, vinculada ao projeto comunitário Sonha Brandão, criou uma disciplina para discutir o assunto. Ela recebeu matrículas de matemáticos, cientistas sociais e até alunos de educação física. A causa foi abraçada pela Pró- Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários, presidida por Mohammed Habib. “Não podemos mais avaliar o progresso sem pesar seus custos ecológicos, sociais e até espirituais”, diz Habib. Ladislau Dowbord, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), faz coro. “De que adianta crescer a taxas fantásticas hoje, se amanhã esse crescimento vai comprometer não só nossa capacidade de continuar crescendo, mas também nossa capacidade de usufruir desse crescimento?”, questiona ele.

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A alta na produção e seus reflexos em indicadores econômicos nem sempre são sinônimos de desenvolvimento. Dowbord lembra do emblemático caso do Alasca, em 1989, para provar sua tese. Para quem mede o desenvolvimento pelo PIB, a alta que se viu na produção do Estado americano naquele ano poderia ser entendida como sinal de vigor econômico. Longe disso. O PIB do Alasca aumentou em 1989 porque um dos maiores derramamentos de óleo do planeta aconteceu na costa do Estado e as cidades foram inundadas por trabalhadores contratados para limpar a região. O índice pode até ter aumentado, mas a que preço? A longo prazo, uma série de indústrias que dependiam do mar e das costas limpas encolheram significativamente. “Se na época a felicidade das pessoas fosse medida, teríamos um retrato bem mais fiel da realidade.” É isso que se espera do FIB, um índice que não substitui o PIB, mas o complementa de maneira imprescindível.

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