Os pastores iraquianos podem poupar seus rebanhos neste fim de ano. Não
será necessário retirar as vísceras de cabritos para se adivinhar o que o futuro lhes reserva. Basta que se ouça o noticiário internacional, dando conta da presença, até 31 de dezembro, de 100 mil soldados americanos na região do Golfo Pérsico. Para o 11º aniversário do início da primeira guerra do Golfo, no próximo 17 de janeiro, esse contingente estará reforçado por outros 50 mil ianques e 50 mil britânicos, atingindo 200 mil guerreiros: o número mágico do Pentágono para uma invasão do Iraque. Essa gente vem acompanhada por centenas de aviões, tanques e navios de guerra. 2003 não promete ser um bom ano para quem
vive perto dos rios Tigre e Eufrates.

Para os oráculos do Ocidente, porém, a tarefa de antever o próximo ano é mais penosa. Há sempre a possibilidade de que não haja guerra alguma. Afinal, parte da dinastia Saddam Hussein – esposas preferidas e filhos mais queridos – já está acomodada em Trípoli, na Líbia, numa espécie de treino para o exílio. Mas a maioria dos bidus deve apostar na explosão da guerra. Na quinta-feira 19, depois que a comissão da ONU que investiga a existência de armas de destruição em massa no Iraque afirmou que o relatório entregue por Bagdá sobre seu arsenal é “incompleto”, o governo americano acusou Saddam de ter cometido “fraude”. Aliás, disso, o presidente George W. Bush está rouco de falar que não lhe interessa apenas um Iraque sem presas afiadas mas, principalmente, sem Saddam A cisma da administração Bush com o ditador iraquiano não se justifica apenas pela possível existência de arsenal mortífero do Iraque. “O tom beligerante, lembre-se, garantiu ao Partido Republicano a vitória nas eleições legislativas de meio de mandato”, analisa Charles Schumer, senador democrata por Nova York. O mesmo rufar de tambores, prevê o senador, deve ter continuidade e aumentar o ritmo para as eleições presidenciais de 2004. É a guerra como estratégia eleitoreira. “Quem está em guerra não tem muito tempo para pensar na má performance da política econômica do governo”, anota o economista Paul Krugman. Além disso, como diz o analista militar Tom Hansler, “este contingente de 200 mil soldados e o equipamento maior do que o arsenal de grandes nações custam caro. Não me parece que o contribuinte americano ficaria contente ao saber que o dinheiro de seus impostos foi usado para uma gigantesca excursão turística de nossos soldados às areias do Oriente”.

Desse modo, aqueles que estão apostando na guerra já contam com dinheiro no bolso para 2003. Ou não? Os mais informados poderiam aplicar suas economias no mercado futuro de petróleo. Eis aí um produto que será hipervalorizado em caso de guerra. “Os Estados Unidos não dependem em nada do petróleo do Iraque”, disse a ISTOÉ o analista de energia Carl Arnold, consultor da rede de televisão Fox. Ele e outros especialistas em combustível lembram que o Iraque, hoje em dia, é responsável por uma quantia desprezível do consumo americano. Venezuela, México, Arábia Saudita, Kuait e outros membros da Opep, além dos próprios poços americanos, nutrem as veias ianques. “Quem choraria o petróleo iraquiano são os franceses e, principalmente, os russos, que vêm fazendo negócios com Bagdá. Por isso, eles são os dois membros do Conselho de Segurança da ONU que mais se opõem às medidas contra o Iraque”, diz Arnold. A bem da verdade, diga-se, o analista da Fox TV fez esta declaração antes de Bagdá denunciar, em meados de dezembro, o contrato de produção e venda de petróleo que mantinha com Moscou. A alegação para interromper uma parceria que vinha desde o fim da guerra do Golfo e rendia frutos políticos suculentos para o regime de Saddam foi a recusa dos russos em fornecer material e expertise para completar um projeto definido como “proibido pelos termos do embargo imposto pela ONU”. Quantos cabritos salvaram suas vísceras para a previsão de que a
Rússia não gritará mais contra um ataque ao regime de Hussein?

Mesmo assim, nem uma cabrada de bom porte será suficiente para mostrar o futuro da humanidade caso a guerra aconteça. Volte-se aos fornecedores de petróleo aos Estados Unidos. A Venezuela está chafurdando no imbróglio Chávez. O presidente do país enfrenta uma greve de petroleiros, além da ferrenha oposição da elite do país. Este impasse subtropical será apenas um carnaval se comparado com o que pode acontecer nas areias dos desertos orientais. Saddam luta pela própria sobrevivência. Ao debandar do Kuait em 1991, as tropas iraquianas atearam fogo aos poços daquela nação. “Foram 16 meses de luta intensa para apagar aquele inferno”, diz David Roberts, especialista americano que labutou para escaldar os incêndios. Imagine-se a situação dantesca resultante da ampliada piromania de um desesperado Saddam.

Ao se acreditar em George W. Bush, o Iraque tem armas de destruição em massa. O que impediria seus militares – que já testaram esse
arsenal nos conterrâneos – de usar os mesmos métodos contra a
Arábia Saudita, o Kuait, Qatar ou os Emirados Árabes? Quanto tempo demoraria para se retomar a produção de poços de petróleo nesses países depois de um ataque com armas químicas ou biológicas? E mais: qual seria a reação de Isr ael – uma potência nuclear, lembre-se – a um míssil Scud carregando, digamos, ogiva tóxica e caindo em Tel Aviv?

Os resultados de um mundo criticamente deficitário em petróleo
são imagináveis. Pegue-se o Brasil, como início de exemplo. A
inflação do final de 2002 chegou aos dois dígitos, e há quem garanta
a continuidade nestes patamares por um grande período de 2003.
Isso, com o barril de petróleo vendido a US$ 30. Triplique-se este
preço, e a inflação verde-amarela voltaria a níveis de José Sarney.
Com a recessão enfrentada pelo mundo – especialmente pela América Latina neste final de 2002 – multiplicada pelo potencial da segunda guerra do Golfo, as perspectivas são para lá de sombrias. É de
se invejar a sorte da manada de cabritos iraquianos.