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Decisão maluca a de Kemal, um turco nascido em uma família rica e tradicional, protagonista do romance “O Museu da Inocência”, escrito por Orhan Pamuk (Companhia das Letras). Para compensar o amor fracassado com uma prima, acontecido há 30 anos, Kemal passa a colecionar tudo o que ela toca, formando um acervo relacionado à sua frustrada paixão. O seu nome é Fussun, uma vendedora de butique que ele reencontra – e com quem passa a ter encontros sexuais – antes de se casar com uma outra mulher. É o primeiro romance de Pamuk depois que ganhou o Prêmio Nobel em 2006, por “Meu Nome É Vermelho”.

 

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Leia um trecho do livro:

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1.

O momento mais feliz da minha vida

Era o momento mais feliz da minha vida, mas eu não sabia. Se soubesse, se tivesse dado o devido valor a essa dádiva, tudo teria acontecido de outra maneira? Sim, se eu tivesse reconhecido aquele momento de felicidade perfeita, teria agarrado com força e nunca deixaria que me escapasse. Levou alguns segundos, talvez, para aquele estado luminoso tomar conta de mim, mergulhando-me na paz mais profunda, mas ele me pareceu ter durado horas, até mesmo anos. Naquele momento, na tarde de segunda-feira, 26 de maio de 1975, em torno de quinze para as três, assim como nos sentíamos além do pecado e da culpa, o mundo todo parecia ter sido liberado da gravidade e do tempo. Beijando o ombro de Füsun, já úmido com o aquecimento do nosso amor, eu a penetrei delicadamente por trás, e enquanto mordia de leve sua orelha, seu brincodeve ter se soltado e, pelo que nos pareceu, pairado em pleno ar antes de cair por vontade própria. Nosso prazer era tão profundo que continuamos a nos beijar, ignorando a queda do brinco, cuja forma eu nem sequer tinha percebido.
Do lado de fora, o céu refulgia como só ocorre em Istambul na primavera. Nas ruas, as pessoas que ainda envergavam suas roupas de inverno transpiravam, mas dentro das lojas e dos prédios, e à sombra das tílias e das castanheiras, fazia frio. Sentíamos o mesmo frio erguer-se do colchão embolorado no qual fazíamos amor, da maneira como as crianças brincam, ignorando alegremente tudo mais. Uma brisa entrava pela janela da varanda, aromatizada pelo mar e pelas folhas de tília; erguia as cortinas de tule, e depois elas desinflavam em câmera lenta, arrepiando nossos corpos nus. Da cama do quarto dos fundos do apartamento do segundo andar, víamos um grupo de meninos jogando futebol no jardim, ao nível da rua, gritando furiosos palavrões no calor da partida, e, quando nos ocorreu que estávamos encenando, palavra por palavra, exatamente aquelas indecências, paramos de fazer amor para nos olharmos nos olhos e sorrir. Mas tão grande era nossa exaltação que a graça do que nos envolvia vinda do pátio dos fundos foi esquecida tão depressa quanto o brinco.
Quando nos encontramos no dia seguinte, Füsun me disse que tinha perdido um dos brincos. Na verdade, pouco tempo depois que ela fora embora na tarde anterior, eu o localizara aninhado nos lençóis azuis, com sua inicial pendendo da ponta da joia, e já me preparava para pô-lo de lado quando, por uma estranha compulsão, guardei-o no bolso. E então eu disse: “Está aqui comigo, querida”, enquanto enfiava a mão no bolso direito do paletó pendurado nas costas de uma cadeira. “Ah, sumiu!” Por um momento, tive um mau presságio, uma sugestão de desígnio maléfico, mas então lembrei que tinha vestido um paletó diferente naquela manhã por causa do tempo mais quente.
“Deve estar no bolso do meu outro paletó."

“Traga amanhã, por favor. Não se esqueça”, disse Füsun, arregalando os olhos muito grandes. “Gosto muito dele.” 

“Está bem.”

Füsun tinha dezoito anos, era uma parente distante e mais pobre, e até deparar por acaso com ela um mês antes eu praticamente me esquecera de sua existência. Estava com trinta anos e prestes a ficar noivo de Sibel, que, segundo todos diziam, era a mulher perfeita para mim.


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