O homem sempre usou a fantasia, na sua função de narrativa social, como uma maneira de olhar no espelho, e entender o mundo à sua volta e sobretudo de compreender o que esse mundo está fazendo conosco.

Diferentes mídias foram sendo utilizadas nessa narrativa social, de acordo com as tecnologias disponíveis em cada período da história: nos relatos orais que depois, acredita-se, foram transformados em poesias por Homero, nas tragédias, nos folhetins, nos romances populares, no cinema, na televisão e agora nas redes sociais.

Há exemplos bastante cristalinos deste tema: Jorge Luis Borges disse certa vez que os “westerns” no cinema desempenhavam, na primeira metade do século XX, o mesmo papel que as tragédias no mundo clássico. O escritor americano Elmore Leonard afirma que a função da literatura noir, a partir da década de 50, é também correspondente à das tragédias de Shakeaspeare. Agora, o ficcionista argentino Ricardo Piglia, numa entrevista recente, disse que as redes sociais teriam hoje o papel do romance popular do século XIX.

Os três apontam os locais onde estas narrativas sociais se apresentam mais visivelmente, em momentos distintos da nossa história. Pode-se presumir daí que é tarefa primeira de cada mídia que surge tomar para si a função de expor as narrativas sociais? É possível. Principalmente se considerarmos a importância dessa “ficção social” no espelhamento da sociedade.

Piglia, no entanto, vai mais longe no seu pensamento: somente quando uma mídia se torna obsoleta para a função de narrativa social, como aconteceu com o teatro, com o cinema e agora com as séries de tevê, é que essa mídia tem a possibilidade de se renovar e de se sofisticar como linguagem artística.

É esta a razão, segundo ele, pela qual as séries americanas adquiriram tanta qualidade nos últimos tempos. Quem acompanha “Damages” ou “Boardwalk Empire” sabe do que Piglia está falando.

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Seria então a função de narrativa social algo limitador para as mídias? É difícil acreditar nessa hipótese, já que tantos artistas, de Sófocles a Crumb, a trabalharam – e a trabalham ainda – tão bem, em diferentes formas de manifestação artística.

Mas o assustador na teoria de Piglia é pensar que a narrativa social nas redes cibernéticas tenha o mesmo valor folhetinesco que já teve nas outras mídias.

Está certo que os dramas são os mesmos de sempre: crítica ao sistema, crítica aos valores, amores impossíveis, flertes, traições, perdas e revoltas.

O espantoso é pensar nesses mesmos dramas sem a abordagem fantasiosa que lhes era característica nas outras mídias. Sem os personagens fictícios e sim com personagens de carne e osso, usuários reais das redes que, sem pudor, expõem sua privacidade com
o mesmo prazer que bisbilhotam a vida alheia.

É um “folhetim” sem mistério ou emoção, banal, mas com um apelo inegável: a vida dos outros e a realidade crua, tal como a vivemos.

Um folhetim sem seu ingrediente mais fundamental, a fantasia, ou, pior ainda, um espelho que mostra uma faceta assustadora da modernidade: o homem que se diverte olhando suas próprias vísceras e sua falta de sentido.


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