Dono de uma prosa elegante e envolvente, o escritor australiano Peter Carey começa seu livro 30 dias em Sydney – um relato desvairadamente distorcido (Companhia das Letras, 254 págs., R$ 26,50) com uma advertência irônica. “Se você disser com segurança que conhece uma cidade, é provável que esteja falando de uma vila. Uma metrópole é, por definição, inesgotável.” A afirmação poderia resumir o projeto de duas coleções superbem-cuidadas e de enfoque bastante atual – O escritor e a cidade, que chega ao segundo volume com a deliciosa obra de Carey, e Metrópoles, cujo terceiro lançamento, Brasília Kubitschek de Oliveira (Record, 320 págs, R$ 26), de Ronaldo Costa Couto, mostra ângulos inesperados da capital do País. Mas o mais curioso é que ambas as coleções não se apresentam como guias turísticos. Os livros são mapeamentos que buscam justamente fugir dos clichês a respeito dos lugares retratados. Cada autor desenha a cidade à sua maneira, com observações pessoais e notas que beiram a ficção.

Lançada em parceria com a editora inglesa Bloomsbury, a série O escritor e a cidade parte de uma idéia não muito nova, mas sempre sedutora, ao revelar os meandros das capitais internacionais pela sensibilidade de escritores intimamente ligados a elas. No primeiro volume, O flâneur – um passeio pelos paradoxos de Paris (Companhia das Letras, 216 págs, R$ 26,50), o americano Edmund White, deliberadamente virou as costas para os cartões-postais do rio Sena, da Catedral de Notre Dame e da Torre Eiffel. Também ignorou o itinerário comum dos grandes bulevares, preferindo o labirinto de ruas estreitas e construções desconhecidas, incorporando, assim, o perfil do andarilho urbano, o flâneur, cuja disponibilidade para aventuras e descobertas foi louvada no século XIX pelo poeta Charles Baudelaire em uma das primeiras manifestações da modernidade. “Paris é um mundo feito para ser visto pelo caminhante solitário, pois somente a passo ocioso pode-se apreender toda a riqueza de seus ricos (mesmo os velados) detalhes”, escreve ele com a total experiência de ter se deixado levar pelas surpresas de cada esquina nos 16 anos em que viveu na capital francesa. Durante este tempo, White flanou por locais pouco valorizados nos roteiros turísticos, revelando jóias como o Museu Nissim de Camondo e seu mobiliário da época de Luís XV e Luís XVI, ou o Hôtel de Lauzun, residência do jovem Baudelaire, que na época costumava usar luvas cor-de-rosa e andar pelas ruas imitando marionete.

Mais radical foi o australiano Peter Carey em seu retrato de Sydney. De volta à cidade depois de 17 anos longe dela, ele evoca a capital da Austrália através do reencontro com os velhos amigos, recuperando histórias de alguma forma relacionadas aos quatro elementos da natureza – terra, ar, fogo e água. Além do fogo, que vive castigando os parques locais, o elemento ar ilustra bem o clima e os tipos de vento que sopram sobre a baía de Sydney. Duas vezes ganhador do Booker’s Prize, o mais importante prêmio literário inglês, Carey faz em seu livro um elogio à amizade, mostrando que a cidade também se revela pela qualidade das relações interpessoais de seus habitantes.

Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, conta que comprou de cara a idéia da coleção O escritor e a cidade quando a Bloomsbury, dona do projeto, o procurou. “Achamos o formato bastante simpático, pois os livros são guias e ao mesmo tempo não são. Eles pegam a alma das cidades, permitindo ao leitor viajar por elas apenas pela imaginação.” Pelo menos três novos títulos foram indicados por Schwarcz: o de Tomás Elroy Martinez, que escreverá sobre Buenos Aires, o de Pedro Juan Gutiérrez, que dará sua visão de Havana, e o de Ruy Castro, encarregado de mostrar o Rio de Janeiro para brasileiros e gringos, já que a coleção é editada nos Estados Unidos, Inglaterra, Austrália e Canadá, entre outros países. “Vou ter que falar dos cartões-postais e clichês do Rio, mas pretendo ir além e surpreender até os cariocas”, afirma Castro, que já acumulou uma bibliografia de 1.500 livros, tendo a Cidade Maravilhosa como cenário ou assunto.

Coincidentemente, a antiga capital do País foi tema do segundo volume da coleção Metrópoles, O Rio de todos os Brasis (Record, 496 págs., R$ 28), do economista Carlos Lessa. Ao contrário dos lançamentos da Companhia das Letras – mais leves e literários –, é um ensaio de fôlego, que acompanha a evolução da cidade, antiga Paris dos trópicos e hoje em parte reduzida a um arremedo de Miami, com o pretenso isolamento da elite nos condomínios e shoppings da Barra da Tijuca. Luciana Villas-Boas, diretora editorial da Record, enfatiza o diferencial. “Nossos livros são mais voltados para o histórico e o socioeconômico, buscando compreender os dilemas das cidades brasileiras. Podem até ser comprados em aeroportos, mas definitivamente não são destinados a viajantes.” Em seu estudo sobre “a esfinge amorosa” postada na Baía de Guanabara, Lessa defende a tese de que a decadência do Rio mitológico corresponde à perda de auto-estima do brasileiro pelo País. Nada mais coerente, então, que o volume seguinte fosse dedicado a Brasília. Afinal, uma das intenções da coleção é instigar um debate sobre os destinos da nação.

Escrito pelo sociólogo, historiador e ex-ministro Ronaldo Costa Couto, Brasília Kubitschek de Oliveira conta passo a passo os lances políticos da criação da nova capital, um processo que se inicia nos tempos dos inconfidentes mineiros, com o sonho de transferir o futuro governo republicano para a Vila Rica de São João del Rey. Com um estilo bem-humorado, Costa Couto soube valorizar a “pequena história”, recheando seu livro de passagens anedóticas, como a dupla apendicite de Juscelino Kubitschek, “caso único no mundo”. A primeira apendicite aconteceu na juventude. A segunda se deu quando o ex-presidente levou um tiro de um sargento da polícia ao ser flagrado dando um aperto na sua mulher. No dia seguinte, as manchetes alardeavam: “Juscelino é operado de apendicite e passa bem.”

Adiantando que “não faz ensaios, vai direto ao assunto”, o jornalista e escritor Humberto Werneck se encontra às voltas com o livro Praia de mineiro – o botequim na vida de Belo Horizonte, um dos próximos títulos da coleção Metrópoles, que irá mostrar a evolução da capital mineira através dos seus históricos pontos de boêmia. Famosa por ser a cidade brasileira com maior número per capita de bares, Belo Horizonte protagonizava bebedeiras mesmo antes de sua fundação, ao abrigar uma legião de operários italianos e poloneses bons de copo. De lá para cá, gerações de artistas, políticos e intelectuais marcaram presença em bares famosos, como o Café Estrela, quartel-general dos modernistas, ou o Bar do Ponto, que roubou o nome de uma parada de bonde em frente e cujos clientes diurnos bebiam cachaça em xícara de café para não serem vítimas da má língua. “Tudo passava por lá, reputações eram feitas e destruídas ali”, conta Werneck, que como “mineiro não praticante” pretende transformar a história de Beagá numa animada conversa de bar.