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DETERMINAÇÃO
Allende se recusou a renunciar à Presidência
mesmo pressionado pelos militares liderados por Pinochet
 

Salvador Allende morreu baleado aos 65 anos. No comando do primeiro governo socialista eleito pelas urnas na América Latina, Allende estava na sede do governo chileno, o Palácio de La Moneda, de onde saíam espessos rolos de fumaça no começo da tarde do dia 11 de setembro de 1973. Depois de ser bombardeado por caças, o palácio foi atacado por terra e invadido por militares liderados pelo general Augusto Pinochet. Do Salão Independência, onde se encontrava, o então presidente saiu morto, enrolado em um tapete. Uma necrópsia encomendada pelos militares golpistas apontou que o presidente se suicidara. Enterrado de forma anônima no dia seguinte, na cidade de Viña del Mar, Allende teve os restos mortais levados de volta para a capital Santiago em 1990, quando terminaram os 17 anos da ditadura implantada por Pinochet. Na semana passada, o corpo do ex-presidente foi exumado por determinação judicial, para passar pela primeira investigação oficial sobre as condições de sua morte.

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HISTÓRIA
A filha de Allende, a senadora Isabel
(de chapéu), acompanha a exumação do corpo do pai
(acima) e o ataque ao Palácio de La Moneda em 1973 (abaixo)

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 Doze peritos estão encarregados de elucidar uma dúvida crucial na história recente do Chile: Allende se matou ou foi morto durante o ataque ao palácio? Na própria família do ex-presidente há divergência de opinião. Sua filha, a senadora socialista Isabel Allende, está convicta de que o pai “tomou a decisão de morrer como um gesto de coerência política em defesa do mandato que lhe foi entregue pelo povo”. Homônima da senadora, a escritora Isabel Allende, filha de um primo do ex-presidente, jamais acreditou nessa versão. Ambas apoiam a decisão do juiz Mario Carroza de mandar esclarecer o que de fato aconteceu no La Moneda.

No dia do golpe, que culminou na morte de mais de três mil pessoas, Allende chegou a receber um ultimato dos militares para abandonar a Presidência e evacuar o palácio. “Não renunciarei. Pagarei com minha vida a lealdade do povo”, respondeu em sua última mensagem, transmitida por meio da rádio Magallanes, de Santiago. Na ocasião, ganhou força a versão de que ele se matara com um fuzil AK-47 que ganhara de presente do líder cubano Fidel Castro (leia quadro). O médico Patrício Guijón, integrante do pequeno grupo de assessores e guardas que permaneceu no palácio com Allende, garante até hoje ter visto o então presidente sentado em uma cadeira, disparando contra si próprio com um fuzil. Guijón conta que estava deixando o La Moneda, como orientara o presidente, quando decidiu voltar para buscar sua máscara antigases. “Vi seu corpo se mover pelo impacto da arma de guerra”, costuma repetir. “Corri em direção a ele, mas não havia mais nada a fazer.”

Nem a viúva de Allende, a professora Hortensia Bussi, pôde ver o corpo do marido, embora tenha acompanhado o enterro em Viña del Mar, antes de partir para o exílio no México. Durante quase quatro décadas, os rumores de que Allende teria sido morto durante o golpe nunca diminuíram, mas a decisão judicial de realizar uma nova perícia se deve a contradições encontradas em 2008 nos documentos da necrópsia feita sob supervisão dos militares. De acordo com um renomado médico forense chileno, Luis Ravanal, os ferimentos no corpo do ex-presidente “não são compatíveis com suicídio”. Além disso, segundo Ravanal, os ferimentos sugerem o impacto de duas diferentes armas – um rifle e uma arma pequena automática, que poderia ser uma pistola.

O processo que determinou a nova perícia é uma das 726 ações que correm hoje no Chile sobre violações de direitos humanos durante a ditadura Pinochet. Testemunha de um desses processos, o sargento brasileiro José de Araújo Nóbrega foi preso em Santiago logo após o golpe e escapou de morrer fuzilado ao jogar-se por uma ribanceira do rio Maipo, nas imediações da capital. Integrante do grupo de militares que desertou do Exército brasileiro para entrar na guerrilha, Nóbrega cerra fileira com aqueles que duvidam do suicídio de Allende. “Para se matar como os militares relataram, ele teria que colocar o cano do fuzil na boca e disparar o gatilho com o dedão do pé”, diz Nóbrega. Essa é uma dúvida que a nova perícia deve esclarecer. Se depender do Exército, mesmo em tempos de democracia, não há entusiasmo para colaborar. Na quinta-feira 26, o comandante do Exército chileno, general Juan Miguel Fuente-Alba, declarou oficialmente que a instituição vai ajudar nas investigações. “Mas não estou dizendo que haverá ordens específicas para encontrar a arma”, ressalvou o general, referindo-se ao fuzil cujo disparo teria provocado a morte de Allende.
 

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