20/05/2011 - 21:00
Economista brilhante, político habilidoso, dono de um estilo de vida repleto de glamour, Dominique Strauss-Kahn, aos 62 anos, deveria, por esses dias, ter se aproximado um pouco mais do Palácio do Eliseu, a sede do governo francês. Favorito nas pesquisas para suceder o presidente Nicolas Sarkozy e ainda no comando do Fundo Monetário Internacional (FMI), DSK, como ele costuma ser chamado, preparava-se para uma reunião com a chanceler da Alemanha, Angela Merkel. Respeitado como poucos pela rigorosa Merkel, o francês estava prestes a negociar um pacote de US$ 80 bilhões de socorro financeiro à Grécia. Seu prestígio como negociador internacional estava, claramente, numa luminosa rota de ascensão. Mas deu tudo errado. Dez minutos antes de o voo 23 da Air France decolar de Nova York rumo a Paris, a polícia prendeu Strauss-Kahn na primeira classe do avião no final da tarde do sábado 14. De lá para cá, a vida de um dos homens mais poderosos do mundo não parou de degringolar. Acusado de ataque sexual contra uma camareira do Hotel Sofitel, na região da Times Square, Strauss-Kahn reapareceu em público dois dias depois, diante de uma juíza da corte de Nova York. Com a barba por fazer, a capa de gabardina azul-marinho desalinhada e o olhar vago, ele teve o primeiro pedido de liberdade sob fiança negado. Saiu do tribunal algemado, cercado por policiais, direto para uma cela do Rikers Island, o maior complexo prisional de Nova York.
ACUADO
Strauss-Kahn e a ficha criminal (à esq.) e, acima, sendo
levado para a cadeia. No detalhe, imagem da suposta vítima
Quando conseguiu trocar a cela pela prisão domiciliar, na sexta-feira 20, Strauss-Kahn já havia perdido o posto de todo-poderoso do FMI e estava com o moral na sarjeta. Pagara US$ 1 milhão de fiança, dera US$ 5 milhões como garantia, usava tornozeleira eletrônica e se submetia à vigilância constante por vídeo e por guarda armado. O cenário de sua derrocada foi a suíte 2806 do Sofitel, cuja diária custa US$ 3 mil e proporciona uma esplendorosa vista de Manhattan. De acordo com o relatório do detetive Steven Lane à Promotoria, por volta do meio-dia daquele sábado a camareira começou a limpar a suíte. Ela acreditava estar sozinha, quando o poderoso DSK surgiu nu, saindo do banheiro, e começou a agarrá-la. Depois de trancar a porta do apartamento, Strauss-Kahn tentou obrigá-la a fazer sexo oral nele duas vezes – uma no quarto, outra no banheiro. Ainda de acordo com o detetive Lane, usando força física, o político francês quis arrancar as roupas da camareira, agarrando seus seios e púbis. Pelo relato, assim que conseguiu sair da suíte, a camareira, aos prantos, contou a seus supervisores o que havia acontecido. Às 13h32, um funcionário do hotel acionou a polícia pelo telefone. Quando os policiais chegaram, o político francês já tinha deixado o Sofitel, sem parar na portaria, deixando para trás alguns objetos pessoais, entre eles um telefone celular. Mais tarde, ele ligou para o hotel reclamando o celular, o que acabou revelando para a polícia que DSK se encontrava no aeroporto, prestes a fugir para Paris.
APOIO
Anne Sinclair, mulher de Strauss-Kahn, chega à corte
com a enteada Camille
Strauss-Kahn negou todas as acusações. Depois que a polícia divulgou ter colhido “evidências forenses” na suíte e ter submetido os dois envolvidos no episódio a exames periciais, o advogado Benjamin Brafman afirmou “não haver provas de um encontro forçado” entre o hóspede e a camareira. Famoso por já ter defendido clientes como o cantor Michael Jackson, Brafman coordena a equipe contratada por Strauss-Kahn e prometeu uma “vigorosa” defesa. Em nome da camareira, o advogado Jeffrey Saphiro retrucou que não há nada de consensual no que aconteceu no quarto de hotel. Assim como a Justiça americana, Saphiro preserva a identidade de sua cliente, que está sob proteção policial. Funcionária do Sofitel há três anos, ela nasceu em Guiné, uma antiga colônia francesa na costa oeste da África. Aos 32 anos, é muçulmana, cria sozinha uma filha de 15 anos e chegou aos Estados Unidos em 1998. Mora no quarto andar de um prédio modesto do bairro do Bronx, onde os vizinhos a descrevem como “discreta” e “trabalhadora”.
ESPANTO
A imagem do político algemado chocou
a França, onde só condenados são exibidos dessa forma
O Sofitel, por meio de seu gerente, tratou de anunciar que a camareira era uma “boa funcionária”. Na França, a imprensa identificou-a como Nafissatou Diallo – o que foi suficiente para que uma foto da suposta vítima se espalhasse pela rede mundial de computadores. No país de Strauss-Kahn, a prisão do presidenciável causou estupor, embora todo mundo soubesse de sua fama de mulherengo. No passado recente, já como diretor-geral do FMI, ele inclusive se envolveu em um escândalo extraconjugal com uma economista da instituição. Na semana passada, uma escritora francesa de 30 anos revelou que Strauss-Kahn tentara estuprá-la em 2002 (leia quadro à pág. 80). O fraco pelas mulheres era assumido pelo próprio político. Em entrevista publicada no jornal “Libération” 17 dias antes da prisão em Nova York, ele mesmo citou os problemas que teria na possível campanha presidencial: dinheiro, mulheres e a origem judaica.
– Sim, eu adoro as mulheres. E daí? Há anos falam sobre fotos de orgias enormes, mas não vi nenhuma. Por que não mostram?, provocou Strauss-Kahn.
Na ocasião, ele chegou a imaginar um cenário no qual “uma mulher que tivesse sido estuprada em um estacionamento” recebesse uma oferta milionária para acusá-lo do crime. Não por acaso, 57% dos franceses acreditam que Strauss-Kahn está sendo vítima de uma armação, arquitetada para afastá-lo da disputa presidencial do ano que vem. A pesquisa, feita pelo instituto de opinião francês CSA, mostra que a porcentagem de adeptos da teoria do complô sobe para 70% entre entrevistados simpatizantes do Partido Socialista, a agremiação de Strauss-Kahn. O processo aberto contra o político nos Estados Unidos tem tudo para tirá-lo da disputa, mesmo que sua inocência venha a ser comprovada no futuro. No cenário atual, são dois os principais beneficiários do escândalo. Em primeiro lugar, o presidente Nicolas Sarkozy, que pretende disputar a reeleição e começou a reverter o baixo índice de popularidade depois do anúncio da gravidez de sua mulher, Carla Bruni. Diante do escândalo nova-iorquino, Sarkozy pediu discrição aos correligionários. A postura da outra provável beneficiária da derrocada de Strauss-Kahn, a pré-candidata da extrema-direita Marine Le Pen, foi diferente. “Eu não estou surpresa”, disse Marine. “Devemos tratá-lo como inocente até que se prove o contrário, mas todos na política de Paris sabem das relações patológicas de Dominique Strauss-Kahn com as mulheres.”
No Partido Socialista, o processo criminal na corte americana desencadeou uma disputa interna com poucas chances de fazer emergir outra liderança da mesma estatura. Independentemente da posição ideológica, o que mais estarreceu os franceses, no entanto, foi o fato de Strauss-Kahn ser exibido algemado, cercado por policiais. Na França, devido à presunção de inocência, só presos já condenados pela Justiça podem ser mostrados nessas circunstâncias. Houve quem apelasse em público à intervenção de Sarkozy para que Strauss-Kahn recebesse um tratamento digno. “Faça o que for necessário, como já fez por outros franceses, para que Dominique Strauss-Kahn possa organizar sua defesa de maneira decente e tenha seus direitos respeitados pela Justiça americana”, pediu o deputado do Parlamento Europeu Harlem Désir, o segundo na hierarquia do Partido Socialista da França. No momento em que seriados americanos sobre laboratórios criminais, como o “C.S.I.”, se popularizam no país, os franceses também se viram discutindo na vida real detalhes similares aos dos episódios ficcionais. Foi assim, por exemplo, com o pedaço de carpete que a polícia nova-iorquina recortou do assoalho da suíte 2806, atrás de provas criminais.
No FMI, as questões são mais práticas. Strauss-Kahn comandou a instituição com admirável eficiência na pior crise da economia global das últimas décadas, mas agora a preocupação essencial é seguir em frente, sem comprometer nem paralisar as atividades. Sua renúncia suscitou questionamentos entre os países emergentes sobre uma dobradinha antiga: o FMI é tradicionalmente comandado por um europeu, enquanto o Banco Mundial fica com um americano. O Brasil defende a escolha do novo comando “por mérito”, como esclareceu o ministro da Fazenda, Guido Mantega, em carta despachada na quarta-feira 18 a integrantes do G-20. Contra as pretensões emergentes, os líderes europeus se movimentam a favor da ministra das Finanças da França, Christine Lagarde. Christine, porém, tem um processo pendente na Justiça, no qual é acusada de favorecer o empresário francês Bernard Tapie em um disputa jurídica com o Estado. Enfim, muito antes de Strauss-Kahn renunciar ao posto, no final da noite da quarta-feira 18, as articulações para sua sucessão estavam em andamento.
CENÁRIO
Fachada do hotel da rede francesa onde teria ocorrido a agressão
sexual de Strauss-Kahn contra a camareira, em suíte cuja diária custa US$ 3 mil
No comunicado da renúncia, decidida com “profunda tristeza”, o político francês reitera que é inocente. Ao comentar que seu pensamento está com a família e os amigos, declara ainda que ama a mulher “mais do que qualquer coisa”. Ele se referia à jornalista Anne Sinclair, uma conceituada apresentadora de tevê que colocou a profissão em segundo plano para não fazer sombra à carreira política do marido, com quem se casou em 1991. Herdeira de Paul Rosenberg, seu avô, um dos maiores marchants do século passado, Anne dividia com Strauss-Kahn, até a derrocada em Nova York, uma vida em alto estilo. Donos de residências luxuosas em Washington, Paris e Marrakesh, no Marrocos, o casal foi fotografado recentemente na capital francesa entrando no Porsche de um amigo. A imagem do casal no carro de luxo, aliada à informação de que Strauss-Kahn pagava até US$ 30 mil pelos ternos que mandava fazer nos Estados Unidos, reforçaram na opinião pública o apelido do político de “socialista caviar”.
Anne é a terceira mulher de Strauss-Kahn, que tem quatro filhas dos dois casamentos anteriores. Michelle, 26 anos, filha do segundo casamento do político, mora em Nova York, onde estuda na Universidade Columbia. É na casa de Michelle que Strauss-Kahn deve cumprir a prisão domiciliar até se apresentar de novo à Justiça, no dia 2 de junho. Um dos maiores entraves que ele enfrentou para conseguir deixar a cela de Rikers Island foi o fato de não haver tratado de extradição entre os Estados Unidos e a França. “É como Roman Polanski, é exatamente a mesma situação”, argumentou o promotor Daniel Alonso à juíza que mandou Strauss-Kahn para a cadeia, referindo-se ao cineasta franco-polonês acusado de estupro na Califórnia há mais de 30 anos que deixou os Estados Unidos antes do fim do processo e nunca mais voltou.