Foi uma cerimônia insólita, que esbarrou no farsesco. Tinham se passado apenas 73 horas da dramática renúncia do presidente Fernando de la Rúa, que abandonou a Casa Rosada (sede do governo) de helicóptero, em meio à mais grave crise social e econômica da Argentina dos últimos dez anos. Precisamente às 11h42 do domingo 23, um político regional até então pouco expressivo, Adolfo Rodríguez Saá, que há dezoito anos governa a pouco importante Província de São Luiz, tomava posse no Salão Branco do palácio como novo presidente da nação, marcando a volta do Partido Justicialista (peronista) ao poder. O presidente do Congresso, o também peronista Ramón Puerta, que ficou à testa do governo por apenas 48 horas, passou a faixa presidencial e o bastão de comando, símbolos do Poder Executivo do país, ao novo mandatário. Todo sorrisos, ladeado por familiares, amigos e correlegionários, Rodríguez Saá mal cabia em si de tanto contentamento. Ato contínuo, a multidão de asseclas que lotava o salão começou a entoar a Marcha Peronista, no que foi acompanhada pelo presidente recém-empossado. O refrão “Viva Perón!, Viva Perón!” empolgava a claque, que terminou o hino aos brados de Argentina!, Argentina! Era como se a simples lembrança da mística do general e ex-presidente populista Juan Domingo Perón, falecido em 1974, fosse suficiente para arrancar a Argentina da interminável crise que a dilacera.

Horas antes, no edifício do Congresso Nacional, depois de passar por uma sala que leva o significativo nome de Salão dos Passos Perdidos, Rodríguez Saá foi eleito presidente pela Assembléia Legislativa (Câmara dos Deputados e Senado Federal) por 169 votos contra 138, depois de uma tumultuada sessão que varou a noite. Se sua eleição não surpreendeu ninguém, já que foi produto de um conchavo entre as lideranças do peronismo, que tem maioria no Congresso, seu discurso de posse deixou perplexos muitos de seus pares. Além das frases de efeito – como “o capitalismo, tal como existe no país, não pode dar respostas ao desemprego, à marginalização e à exclusão social” –, o peronista determinou a suspensão, por tempo indeterminado, do pagamento da dívida externa de US$ 132 bilhões, o que já era esperado por todos. O presidente também anunciou a manutenção da conversibilidade peso-dólar, mas com a criação de uma terceira moeda, que se chamará argentino – na prática, emissão de títulos para pagar salários. Mas ele foi muito mais longe: prometeu gerar um milhão de novos empregos nos próximos meses, aumentar o salário mínimo de US$ 250 para US$ 450, cortar salários de funcionários públicos, estabelecendo um teto de US$ 3.000, e extinguir vários ministérios.

Finalmente, Rodríguez Saá declarou que enviaria ao Congresso um projeto de lei para indenizar as vítimas da repressão aos protestos contra o governo Fernando de la Rúa. Foram 28 mortos, centenas de feridos e milhares de prisões durante a convulsão que desembocou na decretação do estado de sítio, mais protestos e, finalmente, na queda do governo eleito em 1999. As medidas adotadas pelo novo presidente seriam ousadas – embora muitos pudessem considerá-las populistas – não fosse por um pequeno detalhe: Rodríguez Saá foi eleito para um exíguo mandato-tampão, que expira em 60 dias. No próximo dia 3 de março, será realizada eleição para indicar um novo presidente que completará o mandato de De la Rúa, que terminaria em dezembro de 2003. “Tenho 52 anos, idéias e ganas de trabalhar”, afirmou o novo chefe de Estado, que não disse uma palavra sequer sobre o caráter transitório de seu mandato. Na véspera do Natal, num gesto calculado, o novo inquilino da Casa Rosada recebeu as Mães da Praça de Maio, que não pisavam no palácio desde 1984. Segundo analistas, Rodríguez Saá era uma solução de compromisso entre os caciques peronistas – os governadores de Buenos Aires, Carlos Ruckauf, o de Santa Fé, Carlos Reutemann, e o de Córdoba, José Manuel de la Sota –, mas rapidamente se tornou uma força poderosa, com ambições políticas próprias. Poucos acreditam que ele manterá a promessa de não se candidatar em março.

Desesperança – Mas o clima de euforia dos novos donos do poder não parece ter contagiado a maioria da população argentina. Ao contrário das posses de presidentes anteriores, como Raúl Alfonsín, em 1983, e Carlos Menem, em 1989 e 1995, desta vez não houve festa nem comemoração. Apenas alguns gatos pingados – sindicatos e partidos de esquerda – protestaram em frente ao Congresso no dia da eleição. A Praça de Maio, onde se localiza a Casa Rosada – de cujas sacadas os novos mandatários costumam saudar a multidão –, estava completamente vazia no domingo em que o novo governo tomou posse. No bairro de San Telmo, onde aos domingos há uma tradicional feira de antiguidades, o clima era de desalento. A crise e a falta de perspectiva eram o tema recorrente de todas as conversas. “Não vai mudar nada. Estamos quebrados porque, desde a época da ditadura, todos os governos aplicaram a mesma política econômica. Privatizaram tudo, encheram os bolsos e nos deixaram na miséria”, opina o eletricista Carlos Sosa. “Vai haver desvalorização e a Argentina vai acabar sofrendo um bloqueio econômico como Cuba. A diferença é que, aqui, nós não temos um Fidel Castro”, ironiza. A seu lado, a mulher, a professora Letícia di Marzo, grávida de cinco meses, também demonstra ceticismo, mas com uma pitada de bom senso. “Acho que a desvalorização é inevitável, mas deveria ser feita paulatinamente, para não quebrar todo mundo”, avalia.

Este foi certamente o fim de ano mais baixo astral dos últimos tempos na Argentina. As vendas caíram 50% em relação ao ano passado. Na véspera do Natal, as ruas de Buenos Aires, ainda com as marcas dos tumultos da semana passada, estavam cheias de gente, mas poucos se arriscavam a fazer grandes compras. No máximo, presentes baratos, a maioria para as crianças. “Esta festa não será como nos anos anteriores. Não vamos presentear amigos e parentes. Mas vamos comprar algum brinquedo para Juan. Queremos que nosso filho continue acreditando em alguma coisa, nem que seja em Papai Noel”, diz o advogado Alejandro, acompanhado da mulher Isabel. Os vendedores estavam igualmente desanimados. “Este ano, nem tive coragem de armar minha árvore de Natal”, diz Mariela, vendedora de uma loja de perfumes da calle (rua) Florida. Esta rua, outrora símbolo do charme e da sofisticação da capital portenha, está em vias de se transformar num típico calçadão brasileiro, revelando a profundidade da crise que assola a Argentina. Lojas fechadas ou vazias, proliferação de camelôs, mendigos, cantores e artistas improvisados em busca de algum troco – uma cena inimaginável apenas poucos anos atrás. Julio Mendonza, um senhor de seus 60 e poucos anos, sobrevive há cinco tocando bandoneon nas ruas. Austero em sua orgulhosa pobreza, ostentando uma patriótica fitinha azul e branca na lapela (as cores da bandeira argentina), Julio é o retrato vivo do desespero que se abateu sobre a outrora orgulhosa nação vizinha. “Os peronistas agora falam em soberania e direitos sociais. Mas, em dez anos de poder, eles destruíram o país (referência ao governo Carlos Menem, de 1989 a 1999). Puseram dois milhões de pessoas nas ruas”, ataca. “A última esperança foi a Aliança (o governo de Fernando de la Rúa), mas eles fizeram tudo igual, a mesma política perversa. Agora, não creio em mais nada”, conclui.

Desvalorização – Enquanto o povo pouco ou nada espera, o novo governo prepara um plano para uma desvalorização ordenada do peso. A manutenção da conversibilidade, até pouco tempo um tabu absoluto para a grande maioria dos argentinos, encontra hoje cada vez menos defensores. “A conversibilidade foi boa para acabar com a hiperinflação, mas ela não é boa como modelo”, diz o economista Eduardo Conusa, da Universidade de Buenos Aires (UBA). A alternativa de dolarização da economia, defendida, entre outros, por setores ligados ao ex-presidente Carlos Menem, parece agora estar fora de cogitação. “Não há dólares para se aplicar essa política. E, além disso, poderia haver uma corrida bancária”, diz Conusa. “Hoje, a única solução é deixar a moeda flutuar. Mas é necessário baixar as taxas de juros, reativar a economia e criar empregos. Temos que sair da conversibilidade sem gerar inflação”, completa. Segundo o jornal Pagina 12, o novo governo quer ganhar tempo. Enquanto isso, negocia-se com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e com países europeus um pacote de ajuda de cerca de US$ 15 bilhões. “A aposta é negociar, a partir de janeiro, um novo plano com o FMI para, até março ou abril, obter os dólares para defender a flutuação da moeda”, raciocina um economista ligado ao novo governo. A maioria dos analistas acredita que o ideal é o peso variar até 1,40 por dólar, mas todos admitem que, sem um novo pacote ou com uma desvalorização abrupta, a moeda argentina chegaria a 3 pesos por dólar. Resta saber se o FMI, que recomendou as políticas restritivas adotadas pela Argentina e depois lavou as mãos ante o desastre que provocaram, estará disposto a abrir novamente as torneiras para o país. Os sinais não são muito animadores. Na segunda-feira 24, primeiro dia útil depois do anúncio do default (moratória da dívida externa), o risco-país bateu novo recorde e atingiu 5.000 pontos. Cauteloso, o governo suspendeu o limite de US$ 250 para saques bancários, autorizando as retiradas para salários – mas em “argentinos” –, e adiou por alguns dias a reabertura dos bancos.

Hoje ninguém chora pela Argentina. Mais do que nunca, os argentinos se perguntam como foi possível chegar tão fundo. No início do século XIX, a Argentina era a 8ª economia mundial e Buenos Aires, a cidade mais européia da América Latina. Há 50 anos, o país vive uma decadência econômica que atravessou governos populistas, militares e liberais. Agora, o país está virtualmente falido, sem dinheiro,

sem indústrias, empobrecido e sem perspectivas. O escritor mexicano Carlos Fuentes captou bem esse sentimento: “Que fizeram os argentinos da Argentina? Por que, tendo tudo, acabaram sem nada?”